Folha de S. Paulo


O Ministério Público alcança novo patamar com a Operação Lava Jato

RESUMO O autor elenca fatores que, no entendimento dele, fazem da Lava Jato um divisor de águas para o Ministério Público. Diz que a operação pôs fim à impressão de que a Justiça protege os ricos e defende o uso de expedientes contestados, como a delação premiada, dada a magnitude e o impacto político das investigações.

Manuela Eichner

O Ministério Público tem tido um papel excepcional na crise política que vivemos. Alguns críticos afirmam que ele instaura uma ordem de exceção. Mas o "excepcional" se diz em muitos sentidos. Como compreendê-los e não confundi-los? Como evitar, num ambiente politicamente tão dividido e carregado, confusões retoricamente poderosas associadas à ideia de exceção? Um bom caminho é distinguir alguns dos vários sentidos dessa atuação excepcional, de modo a entender a sua relação com a crise política.

A força-tarefa da Lava Jato tem servido como modelo para uma nova forma de atuação do Ministério Público no campo penal. Ela é excepcional porque inusitada e ainda pouco conhecida. Os principais elementos dessa novidade estão relacionados aos itens a seguir:

1. Forças-tarefa

A criação de grupos especiais ou forças-tarefa que atuam com especialização e maior flexibilidade e discricionariedade é uma tendência no Ministério Público brasileiro. Eles foram instituídos em diversos campos de atuação, alterando a forma generalista (sem especialização), individualizada e de certo modo amadora com que tradicionalmente o MP atuava.

Outro aspecto importante se refere à expertise, ao treinamento e à formação dos membros que compõem essas equipes especiais, vários deles com capacitação no exterior. No caso da Lava Jato, cabe destacar a experiência de vários de seus membros (e também do juiz Moro) no caso Banestado do Paraná. A soma dessas características tem justificado a ideia de que a força-tarefa seja qualificada como "tropa de elite" dentro do MP.

2. Novas técnicas de investigação e colaboração premiada

A adoção da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Ativos (ENCCLA) pelo Ministério da Justiça e a aprovação da Lei 12.850/2013 (nova lei do crime organizado) criaram mecanismos para o enfrentamento de organizações criminosas e permitiram a geração de incentivos para a produção de provas por meio da delação, o que não era admitido no sistema jurídico anterior. O emprego de novos métodos autorizados pela legislação também conferiu grau inédito de discricionariedade para as ações do Ministério Público. O valor e a relevância das provas obtidas nas delações, assim como os benefícios que delas podem decorrer, ilustram e referendam essa ampliação de alcance.

3. Coordenação do Ministério Público com outras instituições

O trabalho conjunto com a polícia investigativa (polícias Civil e Federal), o Tribunal de Contas, a Receita Federal, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a Controladoria-Geral da União (CGU), a CVM, outros ministérios públicos e a Advocacia-Geral da União (AGU) criou uma excepcional e rara sinergia entre instituições que tradicionalmente se insulavam. Essa prática ampliou substancialmente a eficácia da atuação de todos os órgãos.

4. Cooperação internacional

O emprego de mecanismos de cooperação internacional também foi inusitadamente elevado no âmbito da Lava Jato. Nela foram fechados 70 acordos de cooperação internacional entre 2014 e 2016. A forma inovadora de atuação se deveu em parte à articulação com a Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República, criada em 2013. Nas investigações relacionadas à Petrobras, empresa que tem operações no exterior, instituições como a norte-americana Securities and Exchange Commission (SEC; comissão de títulos e câmbio) também tiveram papel relevante.

5. Adoção de uma estratégia de comunicação social

A natureza dos casos investigados na Lava Jato, bem como os múltiplos interesses que se mobilizaram para combatê-la, política e judicialmente, exigiram uma estratégia de comunicação social específica. Adotando o contato direto oferecido por audiências com a imprensa, a força-tarefa da Lava Jato passou a informar diretamente a população sobre seus passos e objetivos.

As novas demandas de comunicação social (posto que os casos "normais" do dia a dia do promotor não são passíveis de divulgação) têm exigido cuidado especial para que a autoridade e a imparcialidade da instituição não sejam prejudicadas. Adotar novas estratégias eleva os riscos de que eventuais equívocos na comunicação possam alimentar críticas e contestações.

A celeuma recente sobre os "powerpoints" representando a ação penal contra Lula exemplifica os riscos. Não cabe aqui discutir esse episódio. Em contextos especiais como esse, é de se esperar que, ao lado dos acertos no atacado, surjam erros no varejo –que, em certa medida, fazem parte do aprendizado institucional em curso.

EXCEPCIONALIDADE

Outro aspecto a ressaltar é que o Ministério Público brasileiro é singular em sua estruturação e na abrangência de suas atribuições, que vão muito além da criminal (usualmente o único campo de atuação de seus congêneres estrangeiros). A ampliação de seu campo de atuação para a área cível e para a tutela coletiva é resultado de um longo processo de modificação institucional ocorrido especialmente desde os anos 1940 (muito antes da Constituição de 1988, portanto).

Essa evolução é relativamente excepcional se comparada à de outros países e foi fruto da combinação de forte motivação institucional interna, organização corporativista, lobby bem-sucedido nos poderes Executivo e Legislativo, estratégia de afirmação e autonomia perante outros órgãos do Estado (Judiciário, polícia etc.) e obtenção de apoio da sociedade civil.

O experimentalismo de muitos promotores gerou oportunidades para formas de atuação mais criativas, menos burocratizadas e mais eficazes, em especial no plano local. O sucesso das lutas corporativas e a oferta de uma boa remuneração para os padrões nacionais permitiu também o recrutamento de jovens qualificados para o quadro funcional do MP.

Note-se, entretanto, que a instituição que ocupa as manchetes dos jornais é bastante distinta daquela que não aparece na mídia. Poucos promotores são responsáveis pela imagem global de um órgão formado por muitos membros. A força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, por exemplo, é composta por 14 membros; a título de comparação, o MPF possui cerca de 1.100 integrantes, e os MPs estaduais contam com algo em torno de 11 mil membros.

Por esse motivo, qualquer comentário generalizador a respeito da instituição tecido a partir da atuação do grupo curitibano corre o risco de estar dissociado da realidade.

A atuação da força-tarefa tem tido um impacto excepcional, adjetivo que também se aplica a sua relevância política. Essa se torna ainda maior em face das crises (política e econômica) por que passa o país e que debilitaram profundamente diversos partidos e lideranças, atingindo a própria Presidência da República.

Os brasileiros acompanham diariamente notícias sobre a Lava Jato, que hoje se desdobra em três forças-tarefa, uma com sede em Curitiba, as outras duas no Rio de Janeiro e em Brasília. Além disso, o procurador-geral da República preside a Lava Jato dos réus que possuem prerrogativa de função, o chamado "foro privilegiado" (por exemplo, os senadores Renan Calheiros e Gleisi Hoffmann e o ex-deputado Eduardo Cunha).

A operação rompeu com a percepção generalizada de que a Justiça é ineficaz e jamais atinge os ricos e poderosos. Muitas das mais influentes, poderosas e ricas figuras do país foram condenadas (116 até o momento) e cumprem penas severas –ou ainda correm o risco de ter de cumpri-las.

Ademais, a ação já recuperou cerca de R$ 5 bilhões em ativos. Apenas na Petrobras, um prejuízo de R$ 7,2 bilhões foi aferido. As autoridades brasileiras conseguiram recuperar até o momento US$ 124,9 milhões (R$ 400,2 milhões), cifra oito vezes maior do que o acumulado nos dez anos anteriores. Evidentemente, o sucesso desses ressarcimentos gera impacto na mídia e na política.

DELAÇÃO

Em síntese, poderíamos perguntar: a situação de excepcionalidade de que se reveste a operação Lava Jato justificaria uma forma também excepcional de atuação? A pergunta não pode ser respondida de forma simplista. De alguma forma, a resposta é sim, visto que as circunstâncias especiais, a magnitude do impacto e os riscos políticos envolvidos recomendam o uso de meios e estratégias mais eficazes, até bem pouco não conhecidos pelo direito nacional. A delação premiada e os limites mais discricionários para sua aplicação o evidenciam.

É claro que isso não muda os limites da legalidade aplicável a cada caso, mas altera as formas, as estratégias ("policies") e as prioridades que são fixadas para as apurações. A própria definição das sequências, ordens de investigação, protocolos, objetivos primários e secundários da investigação é fixada por planos de atuação.

É sempre difícil julgar, sem um conhecimento íntimo das investigações e das opções disponíveis, se as estratégias adotadas foram as melhores.

Muitos críticos se insurgem contra ações da Lava Lato acusando-as de parcialidade e seletividade ao supostamente atingir mais determinados partidos do que outros. Por um lado, é certo que muitas suspeitas carregam a marca da desinformação e do mero engajamento militante e reativo, o que é normal e próprio do jogo democrático.

Por outro lado, uma investigação como a Lava Jato, que se orientou para os escândalos relacionados à intensa corrupção ocorrida na Petrobras (o "Petrolão") nos últimos anos, naturalmente vai se deparar com evidências fortes e concentradas nos políticos e interesses que dela se beneficiaram diretamente nas gestões mais recentes, em especial as do PT, PMDB e PP.

Políticos de outros partidos e empresários que estiveram afastados do controle da companhia tendem a não ser objeto das apurações.

As razões para as suspeitas podem ser múltiplas e até fundadas em alguns casos. O MP é "uno e indivisível", diz a Constituição Federal (art. 127, parágrafo 1º), mas as suas estratégias locais de investigação não são (nem devem ser) guiadas por um propósito central de exposição negativa dos partidos e políticos investigados.

Além disso, evidências sugerem que a Lava Jato ainda esteja produzindo resultados que afetam uma gama ampla e plural de legendas e interesses políticos.

É fato que a atuação do MP na Lava Jato apresenta aspectos excepcionais, muitos dos quais podem vir a se converter em normalidade no futuro. Isso dependerá em boa medida de que acertos globais superem erros pontuais. É provável que o impacto do MP na crise política atual continue a ser enorme.

Mas lembremos também que a própria crise é excepcional por sua magnitude e caráter –o que amplia a sensibilidade do sistema político a operações como a Lava Jato. Será bom torcer para que a própria crise não se perpetue e para que as lições da excepcional experiência da Lava Jato venham a se tornar norma.

RONALDO PORTO MACEDO JUNIOR, 53, procurador de Justiça, é professor de direito da FGV São Paulo e da USP.

*MANUELA EICHNER,* 32, é artista plástica e expõe na Arte Pará, em Belém, até 6/12.


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