Folha de S. Paulo


Um médico entre os chato-boys da revista "Clima"

São Paulo, 1964

Fins de março de 1964, já anoitecia e eis que aparece, de surpresa, em nossa casa, o teatrólogo Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática e amigo próximo, em cuja fazenda familiar, em Louveira (SP), havíamos passado muitas férias.

Eufórico, ele tirou da pasta a foto histórica da década de 1940 em que estão retratados os mais ativos intelectuais de vanguarda, das várias áreas da cultura, que escreviam a revista "Clima" e se tornaram referência da intelligentsia brasileira nas décadas seguintes. À frente, ao centro, Antonio Candido, o grande mestre da crítica literária.

À sua esquerda, ele mesmo, Alfredo Mesquita, ás do teatro e dono da livraria Jaraguá, onde se reunia o time da revista; à direita, Lourival Gomes Machado, referência da política na USP e futuro diretor cultural da Unesco; atrás, ao centro, Décio de Almeida Prado, o grande homem do teatro brasileiro, tendo à sua esquerda Paulo Emílio Sales Gomes, farol do cinema e criador da Cinemateca Brasileira.

Finalmente, à direita, Roberto Pinto de Souza, economista e jurista de renome e, à esquerda Antonio Branco Lefèvre, meu pai, médico que se tornara famoso como pioneiro da neurologia infantil e por ter trazido para o Brasil a vacina Sabin (da poliomielite), além de ser responsável pela seção de música erudita da revista.

ACERVO PESSOAL ANTONIO SILVIO LEFEVRE
À frente, Alfredo Mesquita, Antonio Candido e Lourival Gomes Machado; ao fundo, Antonio Branco Lefèvre, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Sales Gomes e Roberto Pinto de Souza
À frente, Alfredo Mesquita, Antonio Candido e Lourival Gomes Machado; ao fundo, Antonio Branco Lefèvre, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Sales Gomes e Roberto Pinto de Souza

Alfredo estava eufórico com o sucesso da Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada em São Paulo no dia 19 daquele mês –com forte apoio do jornal da sua família, "O Estado de S. Paulo"– contra a "ameaça comunista" representada pelo governo do então presidente João Goulart. "Lefèvre, já que não esteve conosco manifestando na praça da Sé, é muito importante que você e todos os nossos amigos de 'Clima' se juntem a nós nesta cruzada pela liberdade", disse ele, apontando um por um na foto.

Alfredo conhecia bem a orientação de esquerda, embora moderada, do time de "Clima", e meu pai espantou-se com o convite, que lhe pareceu, no mínimo, ingênuo. Mas para não entrar em choque com o velho amigo, mudou completamente o assunto da conversa, falando das lembranças dos tempos de "Clima", nos anos 1940. Lembrou a pergunta tão ouvida então: o que estaria fazendo um médico na revista de cultura em que colaboravam intelectuais ousados, apelidados por Oswald de Andrade (cuja irreverência antropofágica eles abominavam) de "chato-boys"?

Lembrou a admiração e a amizade que ele, Lefèvre, tivera com Mário de Andrade, o homem que primeiro assumiu por missão oferecer ao povo a música do mais alto nível –e que fora seu inspirador para a coluna de crítica musical na "Clima".

Depois de um jantar regado pelas lembranças culturais, lá se foi Alfredo, e não soubemos de nenhum "climático" que tivesse aderido a seu apelo, se é que ele ousou fazer o mesmo convite aos demais.

Alguns dias depois, entendemos exatamente até que ponto a "cruzada" chegaria: era desencadeada a "revolução redentora", o golpe de Estado que derrubou o governo Goulart e que, ao contrário do que desejavam idealistas liberais como Alfredo e os outros Mesquita, acabou se transformando numa ditadura militar.

Depois disso, o que aconteceu? Alfredo continuou como expoente no teatro, e os demais da "Clima", destacando-se em suas áreas. Já o "chato-boy" Lefèvre, o médico "estranho no ninho", dedicou-se sobretudo à medicina e a ouvir música erudita. Na política, como os demais intelectuais da publicação, seguiu antenado, porém sempre crítico a ideologias pré-fabricadas. Chegou a ser convidado por Candido a figurar entre os fundadores do PT, mas declinou. Morreria em 1981, aos 64 anos, e teria completado cem neste 2016.

ANTONIO SILVIO LEFÈVRE, 73, sociólogo e editor, interpretou Pedrinho na 1ª adaptação do "Sítio do Pica-pau Amarelo" para a TV, em 1954.


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