Folha de S. Paulo


Você já foi à Grécia, nega? Não! Então, vá

RESUMO O compositor Péricles Cavalcanti escreve sobre recente viagem à Grécia, país que sempre teve papel importante em sua vida (a começar pelo nome), mas que jamais tinha visitado. História, clima e topografia fazem parte do relato, bem como uma tentativa repreendida de cantar no teatro de Dionísio, ao pé da Acrópole.

Ter sido batizado Péricles, por um padrinho chamado Nestor, ambos nomes de origem grega, de certo contribuiu bastante para que, desde criança, eu me interessasse pela cultura grega clássica e seus personagens históricos e míticos e toda aquela fascinante produção artística, filosófica e literária. O resultado mais visível desse interesse pode ser encontrado nas muitas referências a esse acervo que tenho espalhado pelas letras de minhas canções.

Mas quem ou que época, de alguma forma, não reverenciou esse "milagre" que deu origem a tudo que há de realmente fundamental no Ocidente e, mais recentemente, em todo o mundo, cada vez mais "ocidentalizado"?

Jean-Luc Godard, numa de suas tiradas geniais, quando da crise por causa da dívida da Grécia com os bancos da União Europeia, disse que esses deviam perdoá-la, absolutamente, só por causa dos "direitos autorais" de tudo que aquele país inventou para o Ocidente: filosofia, democracia, física, poesia lírica e trágica, os conceitos básicos de toda a estética etc.

A Grécia é verdadeiramente sensacional, e a paráfrase da letra de Dorival Caymmi ("Você já Foi à Bahia?"), que uso no título deste artigo, é para destacar, fazendo um paralelo com essa grande canção-exaltação, a impressão mais forte que se tem ao visitá-la. Tudo o quanto se tenha lido ou se tenha visto em fotos e filmes sobre aquele país se mostra muito pouco, ou mesmo superficial, quando se vai lá. A começar pela ideia comum de que o grego moderno (chamado "demótico") tem muito pouco em comum com o antigo.

Logo que se chega a Atenas, uma cidade muito grande, com cerca de quatro milhões de habitantes, que em muitas de suas avenidas e bairros mais antigos lembra algumas cidades brasileiras, a gente se depara com a palavra "esodos" (êxodos) em toda parte em que procuramos uma saída (às vezes, aparece "exit", versão internacional, mais curta, vinda do latim), e em todo momento que se escuta uma conversa nas ruas (e os gregos gostam muito de falar!) ou que se lê um aviso ou propaganda, reconhecem-se algumas palavras de origem clássica.

Querem ver? Certa vez, conversando com um jovem casal, na Acrópole, eu lhes contava que tinha ido ao velho teatro de Epidauro para assistir a uma encenação contemporânea de "As Aves", comédia de Aristófanes (séc. 5 a.C.). Como o marido não entendera meu inglês, a mulher traduziu para ele dizendo "ornites". Trata-se, portanto, da mesma palavra do grego clássico que deu origem à ornitologia.

Nicolau Vergueiro

É claro que há muitas diferenças também de vocabulário e de pronúncia devidas aos períodos de domínio bizantino e, depois, turco (ninguém sabe como soava o grego antigo!). Mas o alfabeto ainda é o mesmo, embora, por causa do grande afluxo de turistas de todo o mundo, se vejam por toda a cidade anúncios e placas escritos com o alfabeto ocidental padrão ou, às vezes, nas duas versões. E, obviamente, também em inglês.

Conversando com a engenheira grega Alexia Tsouni, ela me assegurou que as semelhanças entre o idioma antigo e o moderno eram ainda maiores quando o primeiro era ensinado obrigatoriamente no curso secundário, mas que, depois de uma reforma na educação realizada nos anos 1970, em que foi abolida essa obrigatoriedade, as diferenças aumentaram, e as pessoas começaram a escrever confundindo vogais, por exemplo, e, assim, mudando a grafia das palavras. Arrisco dizer que aqui no Brasil a exclusão do ensino do latim em nossos cursos, na passagem dos anos 1960 para os 1970, também pode ter contribuído bastante para um certo empobrecimento do português que se fala e se escreve agora.

E como o grego soa bonito, especialmente quando falado devagar! Está entre as línguas (as de origem mediterrânea, principalmente) que dão a impressão de que quem fala o faz pelo prazer de pronunciar e ouvir aqueles sons.

LUZ NATURAL

Outro ponto que impressiona logo de cara quando lá se chega é que a famosa luz natural grega é ainda mais notável quando, envolvidos por ela, se está contemplando qualquer monumento ou paisagem. Em dias com o céu azul límpido (e são muitos assim), tudo se torna absolutamente nítido, a ponto de a própria distância e tamanho do que se está vendo se tornar difícil de precisar. Coisas muito longe parecem estar mais perto, e coisas quando vistas de perto não são de fato tão grandes quanto parecem de longe, como que sugerindo emendas às leis da perspectiva.

De todo modo, a nitidez parece ser a característica principal de tudo o que se vê e pode-se dizer que, de certa maneira, ela permeia toda a cultura grega clássica. Não foi à toa que o pensamento pré-socrático pôde gerar uma sentença tão fundamental quanto a que diz "o ser é, o não-ser não é" (Parmênides de Eleia, séc. 6 a.C.).

Esse "gosto" pela nitidez (sustentado pelo ar seco de toda a região) talvez explique, também, o desenvolvimento precoce das pesquisas acústicas entre os gregos antigos. É muito impressionante a precisão com que o som é propagado do palco para toda a plateia nos teatros antigos, como o de Epidauro, construído no século 4 a.C. por Polikleitos, um arquiteto "expert" nessas casas de espetáculos (logo, não se trata de obra anônima) com capacidade para 8.000 pessoas, depois ampliado para 11 mil (atualmente comporta, ainda, mais ou menos 8.000, por causa do desgaste de parte das pedras que compõem a arquibancada) e ainda em uso, cuja arquitetura impressiona tanto pela aparente simplicidade quanto pela precisão.

Mesmo se estando no nível mais alto da plateia, pode-se ouvir nitidamente qualquer coisa dita pelos atores ou uma moedinha jogada ao chão. É simplesmente fabuloso assistir a uma encenação lá. É mágico por ser absolutamente realista.

E, consequentemente, essa característica revela uma vocação para a clareza de expressão de que a cultura clássica oferece muitos exemplos, seja na arquitetura, seja na escultura, literatura ou mesmo na teoria musical dos pitagóricos, que, como é sabido, estabeleceu com precisão matemática as "leis" que regem a harmonia, ou seja, a ordem da progressão dos harmônicos.

Chama muito a atenção, também, a objetividade da descrição que Heródoto fez da batalha de Maratona, por exemplo, ou a que Tucídides fez da vitória em Salamina, ou a que Plutarco (alguns séculos depois) fez do assassinato de Júlio César (que são usadas até hoje como base em filmes que contam essas histórias!).

E o mais interessante é que toda essa "vocação" de que se pode ver exemplos, ainda hoje, no Museu Nacional de Arqueologia de Atenas existe desde os objetos do neolítico grego, originários de 8.000 (ou mais) anos antes da época clássica.

E mais, gosto de pensar que mesmo a beleza da arquitetura e da escultura deve muito a essa clareza realista. Tanto que quando se está diante dos templos da Acrópole ou do também deslumbrante templo de Poseidon, no cabo Sounion (um dos lugares mais arrebatadoramente lindos do mundo, sem dúvida), o que se sente está além do prazer puramente estético da contemplação. Nos sentimos plenos, em júbilo alegre e leve, fazendo parte, naturalmente, de uma visão (ou concepção) de mundo ou "paisagem" que, além de clara (e isso não tem nada a ver com a cor esbranquiçada ou amarelada dos monumentos, porque na época em que foram construídos eram bem coloridos!), é, de fato, mais tridimensional, universal e abrangente, a ponto de nos incluir a todos numa fundamental humanidade.

Tanto que a gente não tem vontade de chorar de emoção como cheguei a pensar antes de ir à Grécia. Diante dos monumentos e sítios arqueológicos, como a Ágora antiga, por exemplo, que embora bastante erodida ainda preserva os locais marcados e marcantes onde aconteciam as atividades políticas, como as assembleias, nos sentimos exaltados e felizes por fazermos parte dessa história toda, contada por esse povo que escreveu o mais bonito, realista e influente "romance" de nossa humanidade.

ETERNIDADE

Na Grécia, tem-se a impressão serena de que as previsões mais catastróficas sobre o futuro do mundo e de nossa espécie não passam de opiniões diante de toda aquela eternidade factual que se sente ali, embora a tragédia também tenha parte fundamental nesse "romance".

E os acidentes geográficos (e topográficos) da região também impressionam pela uniformidade de características e pela singularidade: a terra seca, pedregosa, que o verde, em forma de arbustos e pequenos tufos de capim, rompe em toda parte, nas colinas que cercam Atenas ou nas belíssimas montanhas mais altas do Peloponeso; a água límpida e absolutamente transparente, sem nenhuma vegetação aquática, do mar que banha as milhares de enseadas ao longo de toda a costa do golfo Sarônico (parte do mar Egeu em que está a capital do país) e as ilhas; os pequenos pedregulhos que estão em toda parte e que podem dificultar a entrada de banhistas no mar (nada que sandálias tipo havaianas não possam amenizar!); e a presença constante das oliveiras pela capital e em toda a região do golfo, o que dá ainda mais "razão" para o mito da fundação que explica porque Palas Atenas, numa disputa com Poseidon, foi escolhida a protetora da cidade –contra todos os poderes do deus dos mares, a deusa usou apenas seu cajado para tocar o solo e gerar um pé de oliveira.

O clima seco e muito quente, em que as temperaturas podem atingir níveis cariocas no verão, é substituído por uma brisa noturna fresca nas regiões mais altas, como no já citado velho teatro de Epidauro, que, além de aberto a um céu estrelado, tem a parte da ribalta também aberta, como todos os teatros da Grécia antiga.

E, por falar nisso, realizei em Atenas uma das coisas que tinha pensado em fazer antes de ir, se tivesse oportunidade: cantar "Canto Maneiro", minha canção que fala de Heráclito e de sua teoria do Ser em eterno movimento, no teatro de Dionísio, ao pé da Acrópole, onde aconteciam todas as apresentações de tragédias e comédias na época clássica. E quase fui expulso do lugar porque eu não sabia que, em Atenas, nas visitas a museus e monumentos, são proibidas quaisquer manifestações que não sejam estritamente "turísticas".

No mais, conversando em inglês com algumas pessoas comuns, em lugares com importância histórica (naturalmente, quase todos!), notei um certo tom, compreensivelmente solene e orgulhosamente modesto, na referência ao passado ou mesmo às paisagens, praias e montanhas daquele país.

Nesses momentos eu me lembrava de trecho de famoso discurso de Péricles (séc. 5 a.C.) que adapto e transcrevo aqui:

"Nós cultivamos o refinamento sem extravagância e a sensibilidade sem afetação; a riqueza, preferimos empregar para o uso, e não para a ostentação."

PÉRICLES CAVALCANTI, 69, é compositor e cantor.

NICOLAU VERGUEIRO, 39, artista visual, foi corroteirista do documentário "Um Casamento", que estreia na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.


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