Folha de S. Paulo


Ornitorrincos, pokémons e outros bichos em Madri

Se o pintor holandês Hieronymus Bosch, conhecido por sua representação do céu e do inferno, visitasse sua própria exposição no Museu do Prado, teria material de sobra para alimentar suas célebres imagens da punição divina. A mostra, por ocasião do 500º aniversário de sua morte, vive um estado de eterna muvuca, abarrotada por multidões.

Os ingressos esgotam no dia anterior, as filas tomam a manhã dos visitantes, e aproximar-se de um dos trípticos de Bosch é um feito heroico. A exposição, inaugurada em 31/5, já teve mais de 335 mil visitas e deve fechar as portas em 11/9. São mais de 21 obras, incluindo o clássico "Jardim das Delícias" –que, de toda maneira, está no acervo permanente do museu, onde se concentram diversas outras obras do pintor, querido no país.

Os destaques da mostra de Bosch são, além do "Jardim das Delícias", o tríptico "A Adoração dos Reis Magos" e suas diversas gravuras de santos. Em uma das imagens, o holandês retratou a santa barbada Wilgefortis. Em outra, São Cristóvão, que defende os crentes da morte súbita.

Pierre-Philippe Marcou - 5.jul.16/AFP
Visitantes diante de vídeo-instalação na exposição de Bosch no Museu do Prado
Visitantes diante de vídeo-instalação na exposição de Bosch no Museu do Prado

O mundo imaginado por ele, séculos antes de Dalí (1904-89), é povoado por criaturas entre o horripilante e o "hipster", a exemplo de um animalzinho no canto inferior esquerdo do "Jardim das Delícias", mistura de sereia com ornitorrinco lendo um livro. Sua obra é marcada por uma linha do horizonte alta e por suas cidades em chamas.

POKÉVERÃO

O calor, forte no verão de Madri, chegava aos 37º C na semana passada. Coincidindo com as férias, fez da cidade um cenário apocalíptico. O vazio das ruas contrastava com a lotação dos museus.

Outro dos pontos de concentração era uma escultura diante do lago no parque do Retiro, no centro da cidade. À meia-noite, jovens se reuniam à beira da água para outro tipo de contemplação. Olhando para as telas de seus celulares, caçavam pokémons, as criaturinhas que voltaram recentemente dos anos 1990 com o lançamento de um game da franquia para smartphones. O jogo concentra diversos pokémons nesse ponto urbano.

A caminhada até o lago, às altas horas da noite, tem um quê de pokéaventura. O resto do parque está vazio. Circulam sempre as histórias de roubos noturnos. Alguns corredores passam pelas avenidas entre as árvores. Aos jogadores, vale o esforço: há ali diversos monstros que só aparecem em áreas verdes, como o louva-deus com lâminas na mão, Scyther.

INSETOS

Quem prefere os insetos da vida real pode escolher um passeio ao recém-inaugurado museu dedicado a esses artrópodes a 50 km de Madri. O InsectPark, construído em um hospital abandonado, expõe a coleção de Pedro Velasco, seu criador. Os bichinhos foram coletados nos últimos 40 anos. Eles agora passam suas tardes nas proximidades do Monastério do Escorial, construído no século 16 por Felipe 2º, um dos principais colecionadores de Bosch no mundo –razão pela qual o Prado tem hoje obras do artista holandês– povoadas, aliás, de monstrengos que, como os insetos, exibem antenas e exoesqueletos crocantes.

SIM OU NÃO

A tortura representada por Bosch em seus trípticos, com demônios açoitando pecadores, tem alguma ressonância na vida política espanhola. Espanhóis foram às urnas em dezembro e junho, mas nenhum partido conseguiu formar um governo. Pelo andar das negociações, já há expectativa de um novo pleito em 25/12. Sim, no Natal.

Políticos de todo o espectro, do conservador Partido Popular ao esquerdista Podemos, parecem empenhados em assombrar a população com os avanços e retrocessos de suas conversas. A essas alturas, no que parece cena do teatro do absurdo, a previsão é de que o premiê em exercício Mariano Rajoy (PP) se apresente ao Congresso no dia 30 de agosto para aprovar seu governo –o que de antemão já se sabe que não vai acontecer, pois o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) deixou claro que vai votar pelo "não".

No ínterim, a Espanha segue sem governo, paralisada, sem aprovar leis e no limite para decidir seu Orçamento para 2017. Com o atraso, o país não cumprirá as metas exigidas pela União Europeia. O quadro real faz o ornitorrinco leitor de Bosch não parecer, no fim das contas, tão surreal.

DIOGO BERCITO, 28, é correspondente da Folha em Madri.


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