Folha de S. Paulo


Enquanto na China a economia avança, no Brasil tropeça

A participação da China no PIB mundial saltou de 2,4% em 1982 para 13% em 2014. A do Brasil aumentou ligeiramente, de 1,9% para 2,8%. A China investe 13% do PIB em projetos de infraestrutura. Os investimentos brasileiros nesse setor, nas décadas de 1990 e 2000, estiveram próximos de 2% do PIB. A participação chinesa nas exportações mundiais multiplicou-se de 1,2% em 1982 para 13,8% em 2015. A do Brasil estagnou ao redor de 1,2%.

A China avançou nas exportações de maior valor adicionado. As corporações transnacionais articularam parte da produção nos países vizinhos –Vietnã, Filipinas, Malásia, Mianmar– e reforçaram as cadeias regionais de suprimento de componentes, máquinas e elaboração de produtos finais na China. Essa "fábrica asiática" já produz quase metade dos bens industrializados do mundo. O Brasil ampliou as exportações de commodities e aprofundou a especialização regressiva de sua estrutura produtiva.

15.out.2012/Reuters
Exportações e importações da China caíram mais do que o esperado em julho
Carros para exportação no porto chinês de Dalian

Esses fatos explicitam as limitações do processo de desenvolvimento e da inserção internacional da economia brasileira nos últimos 30 anos. Persistiram –quaisquer que fossem os governos no poder– enormes deficiências no planejamento estatal, falta de coordenação entre as políticas macroeconômicas e de desenvolvimento, fragilidades intrínsecas ao regime macroeconômico e dificuldades em articular os interesses dos diversos órgãos públicos, atores e classes sociais. Enfim, obstáculos renitentes e de distintas ordens que dificultaram a execução dos projetos de investimentos.

Discussões recentes, inclusive nesta "Ilustríssima", têm priorizado os desequilíbrios financeiros do setor público e apresentado como mecanismo de ajuste a contenção dos gastos sociais. É verdade que a construção de um Estado de bem-estar social –delineado na Constituição de 1988– cria pressões sobre o gasto público para enfrentar as enormes carências e a extrema desigualdade de renda ainda presentes na sociedade brasileira.

Estudos a partir das declarações de Imposto de Renda indicam que a queda da desigualdade na última década ficou restrita à base da pirâmide, com a fatia dos mais pobres ocupando o espaço dos estratos intermediários. A fatia da renda dos mais ricos e, sobretudo a renda da propriedade, cresceu antes da crise de 2008 e resistiu à queda no período posterior, ao mesmo tempo em que o estoque de riqueza seguiu aumentando acima da produção. Outro resultado interessante é que os muito ricos pagam menos impostos, proporcionalmente à sua renda, do que os segmentos sociais intermediários.

Nesse contexto, é crucial equacionar os desequilíbrios financeiros do setor público sem abortar o incipiente Estado de bem-estar social. Há certa margem, ainda que estreita, via eliminação de ineficiências e distorções do gasto, inclusive do social. Porém será necessário reorientar a ação redistributiva do gasto para uma tributação mais progressiva.

Trata-se de redistribuir a carga tributária entre os estratos sociais, ampliando a incidência sobre a renda dos mais ricos e o patrimônio –reduzindo, simultaneamente, os tributos sobre a produção, os lucros das empresas e a folha salarial com ganhos de competitividade no setor produtivo. Os indivíduos muito ricos podem contribuir mais para um "ajuste solidário" compatível com o aperfeiçoamento do Estado social e a viabilização de uma sociedade menos desigual.

O que é tão ou mais importante é que o ajuste fiscal, via equacionamento do deficit primário, por si só, não removerá os obstáculos ao desenvolvimento ou modificará a inserção internacional do país. Parece haver uma redução do espírito empreendedor do empresariado brasileiro e o predomínio de um comportamento rentista e defensivo. Em junho de 2016, as despesas com juros do Estado brasileiro, acumuladas em 12 meses, somaram R$ 449 bilhões ou 7,5% do PIB. As receitas financeiras das corporações tendem a ultrapassar as operacionais.

Ademais, empresas de diversos setores industriais optaram por investir em modernização, com pouca expansão de capacidade e diversificação produtiva. Predominou o aumento das importações –sobretudo da "fábrica asiática"– e a perda de densidade das cadeias produtivas, que se intensificou após a crise de 2008, quando se acirrou a concorrência nos mercados de bens manufaturados.

MUDANÇA ESTATAL

Observa-se ainda uma mudança na estrutura empresarial brasileira comprometida com a expansão e o desenvolvimento do setor industrial. As estatais, no período desenvolvimentista, investiam na frente da demanda, sobretudo em infraestrutura, e criavam um horizonte de rentabilidade para o setor privado. Essa articulação foi desmantelada nas últimas décadas, perdendo-se um instrumento de coordenação dos investimentos. Restaram fundamentalmente a Petrobras, a Eletrobras, a Infraero e poucas empresas estaduais distribuidoras de energia elétrica. Novas estatais foram criadas, como a Telebras, para universalizar o acesso à internet, ou a Amazul, para gerir o programa nuclear e a construção de submarinos –projetos embrionários ou abortados, incapazes de recolocar o país na rota do desenvolvimento.

Por sua vez, grande parte das multinacionais que lideram as cadeias globais de valor está instalada no Brasil. Elas possuem como estratégia predominante o suprimento do mercado interno, a partir de suas plantas espalhadas pela Ásia, Europa ou América do Norte. Em conjunturas de taxas de câmbio favoráveis, ampliam as exportações das plataformas brasileiras, sem promover mudanças na inserção do país nas redes globais de produção.

O comportamento do sistema financeiro doméstico persiste, por um lado, altamente especulativo, operando agressivamente em ações e derivativos com ampla participação de investidores estrangeiros; e, por outro, profundamente rentista e defensivo, apoiando-se em títulos de dívida e operações de crédito de elevada rentabilidade. A despeito de importantes inovações –letra financeira e debênture de infraestrutura–, o financiamento do investimento persiste caro, escasso e com prazo relativamente curto. A aplicação alternativa em títulos públicos faz com que os investidores e as instituições financeiras exijam remunerações muito altas para a concessão de empréstimos.

Todavia, o investimento é um fenômeno financeiro. Hyman P. Minsky, no livro "Estabilizando uma Economia Instável" (1986), afirmava: "A decisão de adquirir ativos de capital é, basicamente, a decisão de ampliar o passivo (endividamento)".

Como, então, financiar o crescimento e o desenvolvimento econômico com restrições de crédito de longo prazo às empresas e famílias?

As instituições financeiras oficiais, a despeito de relevantes, parecem insuficientes para enfrentar os desafios. Não por acaso, impôs-se a capitalização do Tesouro ao BNDES de R$ 512,7 bilhões, entre 2008 e 2014; e ao Banco do Brasil e à Caixa, de R$ 49,3 bilhões. Tal movimento permitiu a montagem de complexas engenharias patrimoniais. Esses arranjos envolveram as instituições financeiras federais (BNDES, Banco do Brasil, Caixa), as estatais (Petrobras, Eletrobras, Infraero), os fundos de pensão (Previ, Petros, Funcef) e as empresas e os bancos privados.

O Tesouro, em boa medida, se endividou para contornar as limitações do mercado privado e viabilizar a alocação dos recursos em taxas e prazos mais adequados ao financiamento dos projetos prioritários. Foram iniciativas importantes, algumas de elevado ônus e suscetíveis a relações conflituosas (quiçá perniciosas) entre empreiteiras, estatais e partidos políticos e incapazes de promover mudanças estruturais nos mercados financeiros. Não se equacionou, portanto, o padrão de financiamento do investimento.

Enfim, as empresas de capital nacional –na maioria, atrasadas tecnologicamente e constrangidas financeiramente– terão capacidade de enfrentar os desafios internos e externos? No âmbito internacional, serão capazes de fazer face à concorrência chinesa nos projetos do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics com o objetivo de financiar a infraestrutura nas economias emergentes? Como enfrentar a quarta revolução tecnológica –automação, robótica, inteligência artificial, nanotecnologia, neurociência, novas formas de energia e novos materiais– e a tendência ao encurtamento das cadeias produtivas, com a verticalização da produção de alta tecnologia? Como avançar na modernização da infraestrutura doméstica?

Desde "O Modelo Político Brasileiro" (Fernando Henrique Cardoso, 1971) e "A Revolução Burguesa no Brasil" (Florestan Fernandes, 1975), sabe-se que o capitalismo periférico, "dependente e associado" é "capenga", em países sem "vocação para potência" (José Luís Fiori, "O Poder Americano", 2004). Neste momento, o capitalismo brasileiro expõe suas fragilidades: desarticulação entre Estado, empresas nacionais e transacionais, limitações dos financiamentos de longo prazo, dificuldades de introdução endógena de progresso técnico, atraso institucional. Esse capitalismo precisa ser repensado e reorganizado, o que requer ousadia e visão estratégica.

Para Fernando Novais ("Aproximações", 2005), "a História viva é sempre a concretização de uma das possibilidades abertas pelos movimentos das estruturas". Por um lado, a crise econômica e as lutas políticas e sociais permitem a seleção de alternativas pelos grupos, classes e indivíduos com maiores recursos de poder, os quais buscam, em geral, preservar o "status quo", em seu renitente "suave fracasso", que predomina desde a crise de 1982. Por outro, impulsionam o surgimento de novos modelos de organização e de gestão da produção, da moeda e do crédito, a introdução de inovações institucionais e tecnológicas, o reposicionamento geopolítico.

Os limites e potencialidades do capitalismo brasileiro precisam ser debatidos com urgência pelos diversos segmentos sociais: governos, sindicatos patronais e trabalhistas, partidos políticos, intelectuais, jornalistas e sociedade civil.

MARCOS ANTONIO MACEDO CINTRA, 54, é economista, pesquisador do Ipea e membro do conselho editorial da revista "Novos Estudos", do Cebrap.

RODRIGO ORAIR, 36, é economista e pesquisador do Ipea.

Nota: As visões expressas pelos autores não refletem necessariamente as posições do Ipea ou as do governo brasileiro.


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