Folha de S. Paulo


Cantor relembra festival que foi avô da Nota Fiscal Paulista

Franca, 1992

27 de setembro de 1992, domingo. Acordei cedinho para estar no aeroporto de Congonhas às 8h30. O sono era muito, pois na véspera a jornada havia sido dupla: show de palanque com o Língua de Trapo, em São Caetano, com a presença do Lula. Depois, festival de música do Sindicato dos Químicos, em Santo André, onde fiz as vezes de apresentador antes de seguir com o show da banda por mais meia hora.

No aeroporto, encontrei o empresário Tom Gomes e a equipe de produção da Gincana da Nota Fiscal, que promovia shows em diversas cidades de São Paulo para incentivar as pessoas a pedirem nota fiscal nas compras, uma espécie de avó da Nota Fiscal Paulista.

Naquele domingo, o show era em Franca, Capital dos Calçados, com Guilherme Arantes, Ivan Lins, Walter Franco, Genésio e a Banda do Laço e a dupla Chicotinho e Salto Alto. Eu estaria lá como apresentador e repórter, junto com o ator Ney Piacentini.

Arquivo Pessoal
Laerte Sarremour, para o Arquivo Aberto, Ilustrissima Credito: Arquivo pessoal ORG XMIT: 5TNUY-BJj3dBICK_Dj5x ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Crachá de apresentador de Laert (aqui com o nome grafado incorretamente) na Gincana da Nota Fiscal de outubro de 1992

O voo era às 9h, um avião fretado da TAM levaria toda essa gente, mas atrasou três horas, forçando-nos a uma longa espera no saguão e no café do aeroporto.

Eu estava à vontade, conhecia boa parte das pessoas que estavam ali. Tom Gomes, produtor do evento, tinha sido empresário do Língua. Ney Piacentini, o outro mestre de cerimônias, já tinha me dirigido num programa de TV, na Band, e num videoclipe do grupo. Denise Prado, produtora da dupla Chicotinho e Salto Alto, já tinha sido até apresentadora da "Rádio Matraca", programa que faço há 31 anos na Rádio USP. E Stella Miranda, uma das atrizes-cantoras da dupla, havia trabalhado comigo no programa "Nas Ondas do Rádio", na antiga TV Manchete.

No meio de tantos amigos, a conversa de que eu me lembro foi com Guilherme Arantes. O papo chegou na política –estávamos no auge da turbulência do "Fora, Collor!"– e lembro de ele ter dito que o povo brasileiro é muito acomodado, fosse em qualquer país da Europa e esse governo já teria caído há muito tempo.

Falando em turbulência, quando finalmente embarcamos, o voo não foi nada tranquilo. Alguns minutos depois da decolagem, o avião começou a chacoalhar tanto que me fez pensar no quanto a música brasileira perderia ali, naquela ocasião, se acontecesse o pior. Lembrei do acidente que vitimou Buddy Holly, Ritchie Valens e Big Bopper, cantado como "the day the music died" (o dia em que a música morreu) por Don McLean em "American Pie". O acidente com Os Mamonas Assassinas só aconteceria quatro anos depois.

O avião não chegou até Franca, não havia teto por lá. Pousamos em Ribeirão Preto, onde almoçamos no aeroporto e seguimos viagem de ônibus, quando fui conversando com Walter Franco, outro velho camarada que já havia dado canja em show do Língua e participado de meu programa de rádio.

Em Franca, as coisas também não foram tranquilas. Um intenso temporal destruiu parcialmente a estrutura do show, armada na praça do Correio, no centro da cidade.

Problemas estruturais contornados, o show finalmente teve início, às 18h30. Depois da chuva, a noite estava fria, mas bonita. Uma neblina espessa pairava sobre a praça do Correio, iluminada pela luz amarela dos postes públicos.

Essa luz era refletida no olhos brilhantes das pessoas que assistiam ao show, felizes por verem de perto aquele monte de artistas. De pé ao meu lado, na lateral do palco, Ivan Lins assistia com atenção ao show de Walter Franco. Sem tirar os olhos do colega, comentou comigo: "Como é rica nossa música brasileira! Quantos estilos, quanta gente boa". Eu não disse nada, só concordei, envaidecido de poder compartilhar de um momento de reflexão tão sincera de um artista daquela importância.

No dia seguinte, cobri a vigília da votação da admissibilidade do impeachment de Collor para a TV Anhembi, no Vale do Anhangabaú, cujo desfecho conhecemos e contraria um pouco a reflexão de Arantes. Nós podemos ser lentos, mas não acomodados.

LAERT SARRUMOR, 58, cantor, humorista e compositor, foi dublador do Topo Gigio e fundador do grupo Língua de Trapo.


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