Folha de S. Paulo


Houellebecq manda nudes em exposição no Palais de Tokyo

"Enfant terrible" das letras francesas, Michel Houellebecq expõe suas obsessões no Palais de Tokyo, endereço-chave da arte contemporânea, em um percurso por salas quase sempre lúgubres, habitadas por fotos e filmes de sua lavra.

Provocador misógino e xenófobo para uns, observador agudo dos usos e costumes do liberalismo para outros, o escritor se notabilizou por romances como "Partículas Elementares", "Plataforma" e "A Possibilidade de uma Ilha", conduzidos por personagens subjugados pelo desenraizamento e pelo conflito entre pulsões bestiais e valores. De sua pluma surgem tipos misantropos, ensimesmados.

Essa mesma solidão impregna as imagens que forram as primeiras salas da mostra, que vai até 11/9. São paisagens ora minerais, ora urbanas (hipermercados, conjuntos habitacionais, fábricas desertas), mas fatalmente macambúzias, inóspitas, quiçá pós-humanas (é disso, afinal, que tratam "Ilha" e, em menor grau, "Partículas").

Houellebecq, que começou a clicar aos 16 anos (hoje tem 58 ou 60, nem ele próprio sabe cravar), diz se considerar antes um produtor de imagens do que um fotógrafo, por não estar à procura do real, mas de uma tradução iconográfica para seus sonhos e manias. Em uma delas, uma colagem das raízes de uma árvore e de uma rocha carcomida pela erosão, trata-se, por exemplo, de reconstituir um pesadelo "dentário", segundo ele.

Em outras salas, excertos da poesia que o autor publica desde o fim dos anos 1980 e de seus romances vêm se deitar sobre cenas de desolação. O nome da mostra, "Rester Vivant" (continuar vivo), é surrupiado de um ensaio que ele próprio escreveu em 1991.

MANDA NUDES

Para seguir vivo, é mister desejo. Daí Houellebecq tira a deixa para uma seção de nus –espécies de capturas de sonhos eróticos enquadrando a mulher que inspirou uma personagem de "Ilha" ou uma manequim contratada pela "Playboy" para um projeto nunca concretizado de ensaio sobre as heroínas da literatura dele. São os únicos retratos da mostra, ao lado dos do cachorro Clément.

"Fotografei pouco a minha vida, mas acho que retratei o que contou: as mulheres e um cachorro", explicou o escritor à revista "Les Inrockuptibles", no que de certo não aliviará a pecha de misógino.

Trechos de um curta-metragem dirigido por ele para a TV e da adaptação que ele mesmo rodou para "Ilha" completam o trajeto, em que há lugar ainda para trabalhos de artistas convidados –que remoem ideias fixas do escritor, como a morte, a libido e as novas fronteiras da ciência.

SELVA EXCÊNTRICA

Além de escritor, fotógrafo e diretor, o francês é também ator de cinema. Protagonizou, em 2014, "O Sequestro de Michel Houellebecq" e "Near Death Experience", codirigido por Gustave Kervern e Benoît Delépine, inventivos bastiões do audiovisual francês atual.

A essa turma de excêntricos se filia Antonin Peretjatko, 42, cujo segundo longa-metragem, "La Loi de la Jungle" (a lei da selva), acaba de ser lançado na França.

A extravagância começa já na sinopse: um estagiário do fictício Ministério da Norma é enviado à Guiana (leia-se, à Amazônia profunda) para supervisionar a construção da primeira estação de esqui tropical indoor. Ele terá como parceira outra estagiária degredada, Tarzan, espécie de Lara Croft francófona.

HINO À DESMESURA

Dessa premissa tresloucada, Peretjatko extrai 90 minutos de um cinema vibrante, que avança com a voracidade de um rio amazônico, sorvendo acenos ao filme de aventura, às "gags" visuais de Jacques Tati ou de Louis de Funès e às narrações em off da nouvelle vague, sem se esquecer da crítica social –o tom jocoso do filme nada subtrai das estocadas na precarização do trabalho, no colonialismo anacrônico e na inacreditável burocracia da França.

Herdeiro espiritual de Buñuel e Artaud, ou da trinca Demy, Rivette e Rohmer, primo artístico dos contemporâneos Leos Carax e Miguel Gomes, o cineasta fura a bolha do drama pequeno-burguês psicologizante que parece encerrar hoje parte da produção autoral francesa. Constrói seu filme como um hino ao atrevimento e à desmesura. "Enfant terrible" ele também.

LUCAS NEVES, 31, é jornalista.


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