Folha de S. Paulo


Reduzir a atuação do BNDES não garante mercado de crédito privado

RESUMO Em resposta a artigo aqui publicado, no qual autores propunham redução da atuação do BNDES para estimular mercado privado de dívidas de longo prazo, autor recomenda que se analise ambiente de negócios no país. Defende que o banco atue seletivamente para fortalecer Bolsa de Valores e mercado de dívida.

Em artigo publicado na "Ilustríssima", em 19 de junho, Aldo Musacchio, João Manoel Pinho de Mello e Sergio Lazzarini apresentaram uma interpretação para um problema que é crônico na economia brasileira: as restrições do mercado de financiamento de longo prazo. Comparativamente a outros países, as dimensões do mercado brasileiro deixam sim a desejar.

Dados do Banco Mundial indicam que, enquanto países como França (95%), Espanha (129%) e Estados Unidos (197%) têm um volume percentual de crédito igual ou superior ao tamanho de seu PIB, o Brasil conta com uma oferta de crédito equivalente a 67% do PIB nacional. A situação é ainda mais grave quando levamos em conta apenas as operações de longo prazo, ainda mais escassas no país. Tal condição também encontra paralelo na posição das bolsas de valores. A Espanha conta com mais de 3.500 empresas listadas, ao passo que o Brasil conta com aproximadamente 350 empresas na bolsa –um mercado exíguo.

Para os autores, parte relevante do problema tem a ver com a participação do BNDES na economia e com a configuração de um certo efeito "expulsão" ("crowding out"). Segundo essa leitura, ao emprestar recursos a taxas subsidiadas, o BNDES impediria o florescimento de competidores privados. Como no enigma do ovo e da galinha, argumentam, não se sabe se é o BNDES que atua para socorrer as ausências do mercado de financiamento ou se este não se desenvolve justamente pela presença do BNDES. Por essa razão, sugerem uma retração do banco como forma de estimular o mercado de crédito.

De fato, o texto chama a atenção para um problema relevante, mas não inclui nessa análise uma variável indispensável: o galinheiro, ou seja, o ambiente institucional. Nos últimos anos, pesquisas empíricas têm mostrado que a qualidade do ambiente institucional importa para o desenvolvimento do sistema financeiro. Países que contam com boa proteção aos credores e regras de governança corporativa bem estabelecidas disporiam de mais crédito e capital. A explicação é simples: investidores protegidos têm maior disposição para emprestar recursos ou para adquirir ações de empresas.

DESAFIO

O problema, no entanto, é que a constituição de um ambiente de negócios com essas características é um desafio e tanto para países em desenvolvimento. A agenda de reformas jurídicas, que passou a ocupar a atenção dos formuladores de política nos mais variados países desde os anos 1990, é pródiga em exemplos de poucos resultados e muitas frustrações. Em sua maior parte, as mudanças legislativas realizadas com a finalidade de construir os mercados não são acompanhadas por sua efetiva aplicação. Nesses países, há uma distância expressiva entre o direito previsto nas regras ("law in books") e o direito de fato aplicado ("law in action"). As conhecidas "leis que não pegam" são apenas um caso extremo dessa discrepância.

Na trajetória recente brasileira, o caso da nova lei de falências, promulgada em 2005, ajuda a explicar o argumento do galinheiro. Trata-se de um marco regulador fundamental na medida em que estabelece os mecanismos de proteção dos credores, notadamente no contexto de empresas em dificuldades. Procurando aumentar a segurança dos investimentos e assim constituir bases mais sólidas para o mercado de crédito, a lei brasileira foi inspirada na lei norte-americana de bancarrota. Nos livros, é uma boa lei para o ambiente de negócios.

Ocorre, contudo, que sua aplicação tem apresentado problemas. É o que revela uma pesquisa conduzida pelo professor da Universidade de Chicago Jacopo Ponticelli. Enquanto nos Estados Unidos o tempo médio para processar um caso falimentar é de um ano e meio, no Brasil esse prazo é superior a cinco anos. O resultado é que mais da metade das empresas analisadas atuam em jurisdições cujo prazo de solução das controvérsias é superior a quatro anos –um tempo excessivo.

Os dados de Ponticelli referem-se apenas à questão da morosidade, mas não à qualidade das decisões. A esse problema, portanto, deve-se adicionar a incerteza da resposta judicial, que muitas vezes apresenta divergências em relação ao direito legislado. Para ficar em apenas um exemplo, enquanto a lei estipula que a recuperação judicial deve ocorrer em 180 dias, há decisões estendendo o prazo e aumentando assim o tempo de espera dos credores.

O caso da lei de falências ilustra bem a dificuldade de se construir um galinheiro organizado. O direito é uma instituição cognitiva, cujas formulação legislativa e efetividade jurisdicional dependem da atuação dos agentes envolvidos. Essa é a razão pela qual os "transplantes institucionais" tendem a não ser exitosos. A aplicação da lei e a sua utilização bem sucedida são atividades indissociáveis das circunstâncias locais, como é o caso do funcionamento das cortes.

Por essas razões, não é óbvio que a relação entre o BNDES e o mercado de crédito seja algo hidráulico, de forma que a diminuição de um causaria o aumento do outro. Como os mercados estão inseridos nas instituições e estas não são como mercadorias, que se adquirem nas prateleiras, a retirada do banco pode só representar uma retração do mercado de crédito no país.

Naturalmente, apontar que os problemas de financiamento ultrapassam o dilema do ovo e da galinha não leva a sustentar que o BNDES não precise ser repensado. Também não exclui a hipótese plausível de que o banco possa causar um efeito de "expulsão" ao financiar empresas que poderiam obter recursos em fontes privadas. A questão, no entanto, é de ênfase. Trata-se menos de identificar uma oposição entre o BNDES e o mercado e mais de reconhecer que, dadas as incertezas das reformas institucionais, o banco precisará ser entendido como parte da solução e não do problema.

A pergunta importante dos formuladores de política não deveria ser como retrair o BNDES e sim como utilizar o banco para alargar as fontes de financiamento da economia. Isso passa por uma atuação mais seletiva do BNDES em seus desembolsos diretos, que seguem sendo necessários, mas também por operações criativas de fortalecimento institucional da Bolsa de Valores e dos mercados de dívida.

Enfim, a realidade de muitos países em desenvolvimento sugere cautela na crítica aos bancos públicos brasileiros. Em muitos deles não há organizações capazes como o BNDES, nem o estoque de crédito é relevante.

MARIO G. SCHAPIRO, 39, é professor de direito e desenvolvimento da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo


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