Folha de S. Paulo


A dificuldade do ser humano em reconhecer outras razões

RESUMO A partir de dois livros recém-lançados, a autora propõe reflexão sobre formas de razão que humanos não aceitam, como a dos animais. A máxima logocêntrica cartesiana teria sido radicalizada para negação de realidades diferentes da humana, gerando uma noção de normalidade que leva à exclusão e à discriminação.

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Em uma das epígrafes de "Literatura e Animalidade", de Maria Esther Maciel, lê-se: "O mundo não é o que pensamos", um verso de Drummond.

Achar que o mundo é o que pensamos advém, certamente, de uma naturalização da ideia do "penso, logo existo", de Descartes. Mas, após mais de 400 anos da máxima cartesiana, acabamos redundando em algo bem mais grave. Algo como "penso, logo o mundo existe", ou "penso que as coisas são assim, logo é assim que elas são".

Trata-se de uma espécie de narcisismo logocêntrico que, entre outras coisas, é um dos responsáveis pela dificuldade atual em reconhecer, por assim dizer, a alteridade do outro. Pensar a existência do outro, independentemente daquilo que pensamos dele ou sobre ele. Pensar e, mais ainda, compreender e perceber que o outro pensa sobre e pensa a nós; compreender que o que imaginamos ser não pensante –animais, principalmente– pode ter outras formas de apreensão e cognição do mundo. E que aquilo que chamamos de pensamento pode ser, para um outro, apenas mais um alfabeto, uma gerência, um esquema de discernimento, em nada superior a outras formas de participar do planeta.

É sobre esse outro, especialmente sob a forma e o corpo do animal, que discutem dois livros recentemente publicados: o já citado "Literatura e Animalidade" [Civilização Brasileira, 176 págs., R$ 34,90] e, de autoria do argentino Gabriel Giorgi, "Formas Comuns" [trad. Carlos Nougué, Rocco, 240 págs., R$ 34,50], ambos vinculando o problema do relacionamento entre humanos e animais à literatura.

A literatura é a vida em linguagem, ou a linguagem em/da e na vida. Ela é vida –recriada, transformada, inventada. O que lemos em um romance, um conto, um poema, efetivamente existe. Antes de mais nada, como linguagem, mas existe também enquanto personagem, ação, tempo, memória, gesto, cena, espaço, sentimento e ideia. Ou não sentimos a angústia de Hamlet, o silêncio impotente de Fabiano e o susto de G.H.?

A linguagem literária não é sobre aquilo que pensamos a respeito do mundo; ela é o próprio mundo e o que ele pensa sobre nós.

PONTO DE VISTA

Nos ensaios claros e elucidativos de "Literatura e Animalidade", Maria Esther Maciel mostra como o ponto de vista do animal aparece em nomes como Montaigne, Jorge Luis Borges, Coetzee, Guimarães Rosa, Drummond e Clarice Lispector, entre outros, alguns coincidentes com as análises mais abstratas e específicas de Gabriel Giorgi.

Um aspecto comum aos ensaios de Maciel –que faz no sábado (2) a mesa "O Falcão e a Fênix" na Flip, ao lado da britânica Helen Macdonald– é a crítica a uma noção unívoca de racionalidade, que chega, contraditoriamente, a ser "o divino do homem" quando deveria, por definição, ser não mais do que humana. Em cada análise, propõe-se "a possibilidade de a razão ser exercida de outras maneiras e por outras criaturas não humanas", superando, com isso, o humanismo tradicional.

Montaigne, por exemplo, já desenvolvia, no século 16, uma tese sobre os animais como "sujeitos de interpretação", já que nós mal podemos conceber o que e como eles sabem o que sabem.

"Besta", "bestial" e "besteira" são formas como qualificamos atitudes estranhas ao comportamento "normal". Chamamos de animalescos comportamentos de má reputação, deixando de reconhecer, com isso, aquilo que há de animal no humano e aquilo que pode haver de bom no outro/animal.

Se admitimos, por outro lado, o olhar do animal, conhecemos não somente o animal mas a nós mesmos por extensão, pois nos enxergamos sob os olhos de um outro totalmente estranho, o que necessariamente amplia nossa compreensão sobre nós.

É o que ocorre, por exemplo, no excepcional conto "Meu Tio, o Iauaretê", de Guimarães Rosa, em que um onceiro do sertão vai, gradualmente, se transformando numa onça, das que costumava caçar. Híbrido de negro, branco e índio, falando uma língua também híbrida, entre humana e felina, o personagem torna-se onça sem deixar de ser homem, aproximando-se "daquilo que Deleuze e Guattari designaram de devir-animal [...] implicando um trespassamento de fronteiras" e levando o homem a "formas híbridas de existência".

Já em "Um Boi Vê os Homens", de Drummond, um boi lamenta "que os homens não sejam capazes de ouvir 'nem o canto do ar nem os segredos do feno'", o que, segundo Maciel, "põe em xeque a capacidade destes [humanos] de entender outros mundos que não o amparado pela razão", ou "um outro lado da fronteira que é, ao mesmo tempo, um encontro com 'algo do qual fomos arrancados' e que está dentro de nós". A autora conclui, peremptoriamente, dizendo que "o movimento em direção ao outro é, nesse sentido, um ir para dentro do que nos define enquanto um eu".

Em "Formas Comuns", Gabriel Giorgi também discute "Meu Tio, o Iauaretê" e "A Paixão Segundo G.H.", além de João Gilberto Noll, Manuel Puig e outros, sob um viés filosófico e com a terminologia própria do pensamento biopolítico de Foucault e Derrida.

O autor, por exemplo, interpreta o conto de Guimarães Rosa como uma narrativa anticivilizatória, em que "civilizar é, antes de tudo, sujeitar os corpos e a vida que os atravessa a uma norma biopolítica que foi europeia, capitalista e formatada em modelos disciplinares, um bios definido a partir de signos raciais, culturais e econômicos", necessariamente segregador de outras formas de vida que não sejam humanas.

Essa visão do outro como "menos que humanos", inclui também "o outro racial, o sexual e o de gênero", traçando diferenças entre "pessoas e não pessoas" e "entre bios e zoé" ou "as vidas por proteger e as vidas por explorar".

Nesse contexto opressivo, a ficção seria uma das alternativas para abrigar um outro tempo, do "indisciplinado e do animal: esse é o vetor que aqui conjuga outro tempo contra a ordem modernizadora [...], de outra possibilidade de comunidade".

Nada mais necessário para o Brasil de hoje, em que "ordem e progresso", um lema positivista do início do século 20, surge para avalizar o retrocesso de posições que desconsideram o outro: o nome social de transexuais; mulheres estupradas que podem perder o direito ao aborto e que passam a precisar fazer exame de corpo de delito; ou negros que continuam sendo a maioria nas prisões. E onde os animais, esses de quem deveríamos aprender a animalidade, são tratados como vitrines de humanos "pet", ou humanoides alimentados à base de acepipes e de filé-mignon.

NOEMI JAFFE, 54, escritora, é autora de "O que os Cegos Estão Sonhando?"(ed. 34) e "A Verdadeira História do Alfabeto" (Companhia das Letras).


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