Folha de S. Paulo


A trajetória única de Boris Schnaiderman

RESUMO O escritor e tradutor Boris Schnaiderman, que morreu no mês passado, foi personagem fundamental na difusão da literatura russa no Brasil. No texto, especialistas comentam a atuação desse ucraniano que, na década de 1960, realizou, com os poetas e tradutores Augusto e Haroldo de Campos, o já clássico "Poesia Russa Moderna".

Lenora de Barros
"Dobrolet" (2000), da série "Ping-poema para Boris", de Lenora de Barros

Em qualquer país do mundo, o ano de 1917 está imediatamente associado à eclosão da Revolução Russa. O Brasil não foge à regra –mas a data bolchevique também está vinculada, entre nós, a uma personalidade que nasceu naquele ano na cidade de Úman (Ucrânia), passou parte da infância em Odessa (onde assistiu à filmagem da célebre cena da escadaria de "O Encouraçado Potemkin", do cineasta Eisenstein), testemunhou daqui a consolidação e o fim do império soviético, atravessou o século 20 e entrou no novo milênio como um dos maiores intelectuais brasileiros, morrendo em São Paulo no mês passado, aos 99 anos: Boris Schnaiderman.

Pode parecer exagero colocar lado a lado um dos maiores acontecimentos da história contemporânea e a trajetória pacata de um tradutor e ensaísta que –a despeito de ter lutado como calculador de tiro da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra, tema dos livros "Guerra em Surdina" (1964) e "Caderno Italiano" (2015)– se tornou referência como introdutor dos estudos sistemáticos de língua e literatura russa no país.

Acontece que a literatura russa sempre foi além do campo da criação ficcional e poética, mobilizando paixões espirituais e religiosas, políticas e ideológicas, com escritores como Gógol, Dostoiévski e Tolstói sendo lidos como profetas ou filósofos para tempos apocalípticos.

Tanto é assim que Bruno Barretto Gomide, autor de "Da Estepe à Caatinga" (Edusp), obra fundamental sobre a recepção do romance russo no Brasil entre as décadas de 1880 e 1930, identifica as várias "febres de eslavismo" que tomaram o mundo e o país sucessivamente, desde o século 19 até meados da Era Vargas (1930-45).

É nesse contexto de frenesi russo que Schnaiderman –até então um engenheiro agrônomo do Ministério da Agricultura– ensaia nos anos 1940 suas primeiras traduções, sob o pseudônimo Boris Solomonov (abreviação do Solomônovitch, seu patronímico russo). Posteriormente, ele renegaria essas incursões, em que se destaca a versão de "Os Irmãos Karamázov", de Dostoiévski, só publicando traduções assinadas com nome real a partir de 1959, quando sai sua antologia de Anton Tchekhov.

"Antes disso, não conseguia vencer o bilinguismo", disse Boris Schnaiderman em entrevista a este articulista, publicada na revista "Cult" quando completou 80 anos.

Autor do estudo ainda inédito "Dostoiévski na Rua do Ouvidor", em que aborda o impacto da literatura russa no Brasil durante o Estado Novo, Bruno Gomide contesta a visão do próprio Schnaiderman. "Boris costumava ressaltar o isolamento intelectual em que vivia nos anos 1930 e 40 e o quanto suas iniciativas da época eram imaturas. Prefiro ver a sua trajetória não como o repúdio completo da primeira fase, mas como depuração", disse à Folha.

REARRANJO

Essa trajetória é, com frequência, comparada à de grandes intelectuais centro- europeus que tiveram atuação importante na cena literária brasileira (como o alemão Anatol Rosenfeld, o austríaco Otto Maria Carpeaux e o húngaro Paulo Rónai). Gomide, porém, observa que, enquanto estes "já chegaram 'prontos' ao Brasil e aqui desenvolveram laços com a cultura de adoção, Boris veio ao Brasil aos oito anos, foi 'formado' na cultura literária e jornalística brasileira e tanto o estilo intelectual que adotou quanto os autores e recortes que privilegiou na fase madura, de fins dos anos 1950 em diante, são resultado de um rearranjo, com rupturas e continuidades, da experiência anterior".

Não seria exagero dizer que Boris Schnaiderman é responsável pela mais recente febre russa que acomete o Brasil e que teve início em 2000 com a publicação das obras de Dostoiévski pela editora 34 –o que inclui suas traduções de "Memórias do Subsolo" e "Um Jogador", entre outras, e uma legião de tradutores formados sob sua influência.

O fenômeno persiste há 15 anos e inclui desde clássicos como Púchkin, Tchekhov, Leskov e Bábel até os menos conhecidos Daniil Kharms, Aleksandr Kuprin, Varlam Chalámov e Ivan Búnin –primeiro russo a ganhar o prêmio Nobel de literatura, em 1933, e autor de "O Processo do Tenente Ieláguin", sobre o qual Schnaiderman trabalhava ao morrer, em 18 de maio, e do qual a "Ilustríssima" publica trecho inédito.

Esses últimos autores já pertencem ao período soviético, mostrando não apenas como a nova febre eslava vem se propagando nos trópicos, na esteira do trabalho de Schnaiderman, mas também seu caráter pioneiro como autor –ao lado de Haroldo e Augusto de Campos– do livro que Gomide considera o mais inovador em toda a história do contato literário Brasil-Rússia: a antologia "Poesia Russa Moderna", de 1968.

"Embora ele tenha levado Dostoiévski, Tolstói, Górki e outros autores a um nível tradutório superior, esses escritores estavam inseridos na cultura brasileira desde o fim do século 19. O nicho da literatura soviética antes de Boris, porém, era muito precário, atrelado a diretrizes partidárias. Já sobre a poesia, basta dizer que, até os anos 1960, nunca houvera entre nós tradução de poesia russa de qualquer tipo –fora alguns fragmentos, traduzidos indiretamente, de Maiakóvski", completa o pesquisador.

VANGUARDA

O poeta, tradutor e ensaísta Augusto de Campos foi aluno de Boris no curso livre de russo da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia, entre 1963 e 1964. Seu irmão, Haroldo, frequentava outro curso do idioma e mostrou a Boris sua tradução do poema de Maiakóvski sobre o suicídio de Iessiênin. O contato entre eles –conta Augusto– começou por essas duas vias, mas "a poesia concreta também teve tudo a ver, já que começáramos, Décio [Pignatari], Haroldo e eu, um projeto visando traduzir os autores mais radicais de vanguarda desde os primeiros anos de 1950".

Com poemas de ícones modernos como Vladímir Maiakóvski, Óssip Mandelstam, Ana Akhmátova e Marina Tzvietáieva, entre outros, a antologia é definida por Gomide (em seu livro inédito) como intervenção poética que, no ano de decretação do AI-5, "colocava, de modo muito mais refinado e pela via da arte, a literatura russa em choque com o autoritarismo do país num momento de violência comparável ao da ditadura varguista". Uma avaliação que vale tanto para "Poesia Russa Moderna" quanto para a outra parceria tradutória entre os Campos e Boris, publicada no ano anterior: a coletânea "Maiakóvski: Poemas".

Augusto conta que, "para provocar a ditadura militar", escolheu "propositadamente alguns dos poemas mais engajados de Maiakóvski, como o 'Hino ao Juiz', em que utilizava a palavra 'cassar' ('Os juízes cassam os pássaros, a dança,/ A mim e a vocês e ao Peru'), e 'Black & White' sobre o negro surrado em Havana pelo biliardário norte-americano Henry Clay, 'rei de todos os açúcares', que termina com um apelo ao Komintern, em Moscou. E traduzi ainda o dístico revolucionário 'Come ananás, mastiga perdiz/ Teu fim está prestes, burguês'. Nunca fui comunista, mas não resisti ao trocadilho com Prestes...".

O autor/tradutor de "Poesia da Recusa" (2006) –que traz textos de Mandelstam, Blok, Iessiênin, Pasternak, Akhmátova e Tzvietáieva entre poetas de língua francesa, inglesa e alemã– ressalta que Boris não participava diretamente do aspecto poético da traduções.

"As escolhas eram minhas ou de Haroldo. Boris fazia, principalmente no início, a tradução literal, lia em voz alta para que anotássemos a acentuação, o que era muito importante, pois as palavras em russo mudam frequentemente de acento conforme o caso da declinação em que estejam, e diversas vezes têm acentos diferentes, embora homógrafas. Voltávamos com as traduções poéticas prontas para ele examinar e ele discutia algumas soluções, tendo em vista o significado literal. Lembro-me como se fosse hoje dele dizendo: 'Muito bonito, mas precisamos conversar"¦'. Modificávamos raramente, pois justificávamos quase sempre o afastamento da literalidade por motivos formais de ritmo, métrica, ou de compensação poética (rimas, paronomásias, por exemplo, abundantes na poesia de Maiakóvski, Khlébnikov, Tzvietáieva)".

Foi justamente por meio dessas duas antologias e no ensaio "A Poética de Maiakóvski" (tese de doutorado de Boris Schnaiderman, publicada em 1971) que o poeta e compositor Arnaldo Antunes –cuja obra tem referências explícitas do concretismo– descobriu esse universo de autores, em especial a visualidade de Khlébnikov e Krutchônikh, e uma "utopia política associada a uma nova estética, uma nova sensibilidade", como declarou à Folha.

Outro poeta que sempre manteve interlocução com os concretos, além de ser diretor da Casa Guilherme de Almeida, que abriga o Centro de Estudos de Tradução Literária, Marcelo Tápia faz uma distinção entre a maneira como Boris Schnaiderman trabalhava ficção e poesia.

"Afeito à prosa, Boris se ocupou da abordagem da correspondência entre original e texto traduzido, não hesitando em rever e modificar substancialmente o já feito, em busca das melhores soluções e do desapego criativo necessário ante a tirania de uma suposta equivalência semântica como missão essencial do tradutor", diz Tápia.

"Na poesia, abriu-se ao compartilhamento, com os irmãos Campos, da tarefa de recriar poemas de autores russos caros às perspectivas construtivistas com as quais o concretismo se afinava, propiciando o desenvolvimento da tradução em equipe, considerada ideal por Haroldo de Campos por envolver o desvendamento linguístico sustentado pelo especialista no idioma como base para a recriação estética."

O desprendimento em relação às traduções de prosa –que não hesitava em renegar ou refazer– e o senso de cooperação nas traduções poéticas –que incluiu parcerias com Nelson Ascher são traços de um temperamento que se manifestava em sua fala sempre mansa e contida, em contraste com a personalidade extrovertida e falante de sua mulher, a professora de literatura e historiadora Jerusa Pires Ferreira, como lembra Arnaldo Antunes, amigo desse casal "muito vivo e divertido". Ou ainda em seu papel aglutinador na criação do departamento de russo da USP, em 1963.

Aglutinador, sim, porém com convicções teóricas que seriam reiteradas quando o linguista russo Roman Jakobson veio Brasil, em 1968, para uma série de encontros promovidos pela USP.

"A institucionalização do curso de Boris e sua integração definitiva no currículo universitário na área de letras orientais foi fundamental para a difusão da cultura russa no Brasil. A presença do Jakobson também teve extraordinária importância. E a circunstância de Boris ter abraçado, na contramão dos sociologoides, a área da linguística semiótica, introduzida no Brasil por Décio Pignatari, não foi menos relevante", diz Augusto de Campos, em referência ao enclave "formalista" que se constituiu no curso de russo em meio a departamentos com linhas teóricas de viés mais sociológico.

Bruno Gomide resume essa trajetória desdobrada em várias frentes lembrando que Schnaiderman "foi o único a unir as atividades de tradutor, professor, orientador de teses e crítico (em jornais e em livros acadêmicos) ao longo de mais de meio século –atividades que, em outros países, estiveram dissociadas". Ou, para sintetizar, ainda mais: "Ele teve a única trajetória consistente de 'russista' na América Latina".

MANUEL DA COSTA PINTO, 49, é jornalista, colunista da revista "sãopaulo" e autor de "Paisagens Interiores e Outros Ensaios" (B4).

LENORA DE BARROS, 62, é artista plástica e expõe na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, até 30/7.


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