Folha de S. Paulo


Ajustados na hora de satã em Caracas

Um dos maiores desafios de trabalhar como jornalista na Venezuela é a dificuldade de acesso a informação precisa e confiável. O governo só divulga estatísticas a conta-gotas e, quando o faz, ninguém além dos chavistas fervorosos acredita. A oposição também vive mentindo.

Mesmo nesse contexto, os venezuelanos, grandes tagarelas, estão sempre competindo para ver quem está mais bem informado sobre o andar da política e da economia. Ganha a atenção de qualquer roda de conversa ou grupo do WhatsApp quem contar a história mais maluca.

O problema é que, sem dados críveis e com uma mídia ultrapartidária, a informação acaba vindo de fontes como o amigo que tem um primo cujo cunhado é oficial nas Forças Armadas. "Os rumores preenchem o vazio informativo", diz Luis Vicente León, analista econômico.

Não por acaso, a Venezuela é o paraíso das teorias da conspiração e supostas verdades ocultas.

CHÁVEZ E OS CUBANOS

Boa parte da classe média venezuelana tem certeza de que o regime cubano é quem realmente toma as decisões de governo na Venezuela. Essa mesma teoria sustenta que não foi Hugo Chávez quem, devastado por um câncer, escolheu Maduro como sucessor, mas os irmãos Raúl e Fidel Castro.

Há até quem acredite que a doença de Chávez é fruto de um envenenamento planejado pelos cubanos para radicalizar a implementação do socialismo na Venezuela.

A turma opositora também acha que Chávez já estava morto bem antes de 5 de março de 2013, data do anúncio de sua morte, e que está enterrado em Cuba, não no seu panteão de Caracas.

Chávez, aliás, é prato cheio para todo tipo de boataria. Atribui-se a ele desde um relacionamento amoroso com Maduro até um pacto com o diabo.

No mês passado, o ex-deputado Walter Márquez, conhecido opositor, deu entrevista dizendo que a recente mudança do horário ordenada por Maduro sob a justificativa de economizar energia era, em realidade, uma manobra para sintonizar o país com a "hora de satã".

Dias atrás, um garçom de restaurante me garantiu que Maduro sabe que está prestes a cair e já comprou uma casa em Moscou para se instalar com a família num autoexílio.

Cansei de ouvir amigos venezuelanos me avisando para estocar comida porque um golpe de Estado é iminente.

GUERRA ECONÔMICA

Para os governistas, não cabe dúvida de que o câncer de Chávez foi incutido pela CIA.

Mas a teoria conspiratória mais difundida pelos chavistas é a da "guerra econômica". Repetida como mantra pela propaganda estatal, a tese sustenta que o desabastecimento e o colapso da economia são orquestrados por empresários e políticos que recebem ordens dos Estados Unidos para jogar a população contra o governo.

A degringolada do preço do petróleo, sustentáculo da Venezuela, não é causada pelo excesso de oferta no mercado mundial, mas por conspiradores obcecados em acabar com o chavismo, repete a mídia oficial.

O deputado chavista Pedro Carreño é famoso por ter dito, em discurso no plenário do Parlamento, que a DirecTV espiona seus assinantes por meio de câmeras secretas instaladas nas televisões.

Essas bizarrices seriam engraçadas se não fossem trágicas. Vários empresários já foram presos sob acusação de fomentar a tal guerra econômica.

Num registro semelhante, o opositor peso-pesado Leopoldo López cumpre pena de quase 14 anos de prisão por ter propagado incitações à violência através de "mensagens subliminares".

MÍDIA CÚMPLICE

Versões estapafúrdias circulam no mundo inteiro, mas na Venezuela elas são propaladas por alguns dos mais importantes veículos de comunicação. A já mencionada tese da hora satânica saiu no La Patilla, um site resenhado até por embaixadas.

O Runrunes, outro site conhecido, vive publicando notícias falsas. Em fevereiro, cravou que o magnata opositor Lorenzo Mendoza estava prestes a ser detido. Ninguém se importou com o fato de a notícia não ter se confirmado.

SAMY ADGHIRNI, 36, é correspondente da Folha em Caracas.


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