Folha de S. Paulo


Psicanalista responde a texto de Zeljko Loparic sobre psicologia de Winnicott

A revolução psicanalítica, que teria sido encabeçada por Donald W. Winnicott e que foi anunciada por Zeljko Loparic na "Ilustríssima" de 8/5, parece mais uma regressão a tempos pré-freudianos do que um inusitado avanço a campos não tocados por Freud.

Sabe-se que Loparic defende há bastante tempo sua tese de paradigmas e revolução científica na psicanálise a partir das ideias cunhadas por Thomas Kuhn. Entretanto, ao insistir em suas proposições e quase eliminar a atualidade e a força dos pensamentos freudianos, Loparic ignora inúmeros estudos (Peterson, 1983 e Carone, 2003 são apenas dois exemplos) que apontam para a não-aplicabilidade das concepções de Kuhn na psicologia e, mais radicalmente, na psicanálise, ao contrário do que ocorre em outros campos científicos.

Embora haja um velho impasse sobre a cientificidade da psicanálise, não é isso que torna os conceitos de Kuhn infrutíferos para este campo. Freud trilhou caminhos inversos aos daqueles seguidos por cientistas naturais. Em psicanálise, a singularidade define e delimita a atenção do analista. Em outros modelos de ciência, as particularidades dos objetos estudados são excluídas de modo a que o interesse esteja voltado para o que é universal ou geral. Ainda que também existam generalizações e até tentativas de atingir aspectos universais que guiem a escuta psicanalítica, é a especificidade da história do paciente que a orienta. Nesse sentido, os paradigmas são elásticos ou simplesmente inexistem nesse terreno, marcado pela inesgotável pluralidade de vozes.

Talvez quem melhor defina o que se passa nesse território chamado psicanálise seja Fabio Herrmann, que em "Sobre a Infância de Adão" diz: "Cada uma das psicanálises clínicas ou teóricas de Freud, como cada uma daquelas que conduzimos nós, seus pósteros e seguidores, cria e descobre inconscientes que não podem ser reduzidos a um só conjunto, sem que se perpetre alguma violência epistemológica. A resistência a aceitar essa elementar verdade por parte de certos analistas refugia-se em sofismas, dos quais o mais encontradiço nas discussões psicanalíticas e acadêmicas não honra o douto título de quem o enuncia, seja professor, seja analista; a saber, que constituindo tal ou qual análise um novo inconsciente, este ultrapassa o acervo freudiano".

Se cada inconsciente coloca toda a psicanálise freudiana em xeque e exige um permanente processo de reescrita da psicanálise, Winnicott não teria sido o nome capaz de revelar a verdade no interior da esfera psicanalítica, mas mais um a fazê-lo, dentre os tantos igualmente relevantes nesse campo.

Um dos tópicos que teriam sido revolucionários, segundo Loparic, é a psicopatologia de Winnicott na qual se encontram "distúrbios [que] não são gerados pela expulsão, para fora da consciência, daquilo que aconteceu, mas não deveria, e sim por aquilo que não aconteceu, embora precisasse acontecer". Ora, esse aspecto não é uma ruptura em relação a Freud. Toda a teoria do trauma e da "Nachträglichkeit" falam de um outro modo de recalque que se dá em razão daquilo que ainda não ganhou a possibilidade de representação, repetindo-se compulsivamente. Um dos mais belos textos sobre o assunto é "O Acontecimento e a Temporalidade: o Après-coup no Tratamento", de Jacques André, no qual Winnicott é justamente mais um nome a tratar questões concernentes a casos desse tipo.

Mas essa antiga tese de Zeljko Loparic com seus paradigmas e revoluções em psicanálise não mereceria essa resposta se sua versão de Winnicott e alguns postulados do próprio psicanalista inglês não trouxessem questões mais sérias para a área. Ocasião importante para resgatar as primeiras investigações de Freud com as histéricas e confrontá-las com aquelas empreendidas por Winnicott.

HISTERIA

No século 19, as mulheres burguesas estavam destinadas ao casamento e ao cuidado dos filhos, quase sem saída. Outras, com menos "sorte", eram operárias ou prostitutas. Aquelas poucas que saíram desse script tiveram que pagar o preço psíquico-social de uma luta que segue em curso.

Ao escutar essas mulheres, Freud concedeu voz a aspectos insubordinados do feminino: sexualidade e agressividade, que apareciam convertidas em sintomas do corpo. Quando os sintomas começaram a ganhar certa articulação pela palavra, Freud ouviu também os limites do patriarcado e da civilização ocidental. Ainda que levasse uma vida privada convencional, o compromisso de Freud com a verdade dos sintomas das mulheres o conduziu para territórios que questionavam a tradição do casamento, da maternidade, do pai como aquele que apenas apoia os cuidados da esposa com os filhos e se encarrega de interditar simbolicamente o incesto, dando o contorno da Lei. Em suma, Freud foi longe com as mulheres. Entretanto, após anos de experiência, ainda se perguntava: "afinal, o que quer uma mulher?". Indagação que denota profundo interesse e, ao mesmo tempo, reconhecimento de seus limites diante da questão do feminino. Daí ser importante retomar aqui certas passagens da história.

Sabe-se que, na Idade Média, o feminino assume formas demoníacas, extrapolando as fronteiras do bem e da ordem cristã. Sempre atrelada aos pecados da carne, a mulher era portadora de uma sexualidade desmedida e ameaçadora. O valor da maternidade inexiste até o século 17; a mulher não era a maior responsável pela saúde e pela educação das crianças. Foi somente nos séculos 18 e 19 que nasceu um discurso médico sobre o feminino coincidente com a constituição da ordem familiar burguesa.

Valores burgueses e a ideia de que filhos eram herdeiros de propriedades e negócios da família trouxeram para a esposa o papel de tutora da prole. A linguagem médica atentava para a sobrevivência e o aperfeiçoamento das crianças e a mãe era figura a cumprir a tarefa de zelar por esses pontos. Firmaram-se então pressupostos biológicos que ligavam de forma inextricável a mulher ao lugar de mãe. Com isso, a lógica científica naturalizou a dominação sofrida pela mulher e orientou um programa político que bloqueava outras maneiras de inscrição social do feminino.

Contudo, o próprio liberalismo e sua ideia de igualdade colocava questões para essa versão médica da história. Uma delas era a educação das mulheres para assumirem empreendimento tão fundamental. Esculpindo um perfil mais dócil e sensato para elas, a sociedade patriarcal conseguiu domesticar suas ambições e desejos, educando-as para bem cumprir os encargos do lar. Outro ponto importante era a dedicação exclusiva à função doméstica, que impedia a circulação pelo espaço público na condição de cidadã. A ideia iluminista de direitos universais e igualdade não condizia com a restrição da vida política das mulheres e com as diferenças sociais entre os gêneros. O discurso médico naturalizante foi o único capaz de promover o entrelaçamento inarredável entre sexo feminino e maternidade até feministas começarem a desatar este forte nó.

Agora, com o Winnicott de Loparic, voltamos ao estágio em que "a ordem social, em particular a família, emerge em larga medida das tendências rumo à organização em uma personalidade individual. O pai, protegendo a mãe nos estágios iniciais do amadurecimento da criança, possibilita a esta suportar a culpa de seu uso excitado da mãe e, assim, ficar livre para amá-la instintivamente –sendo que os instintos, no início, não são genitais, mas relacionados à digestão".

Retiramos de cena o erotismo inerente ao início da vida, restituímos à mãe o lugar de cuidado quase integral da criança e ao pai devolvemos, finalmente, o lugar de retaguarda para os impasses da maternidade. Décadas de luta feminista lançadas ao lixo por uma teoria "revolucionária" que devolve à mãe o seu "devido lugar". Nessa vertente, naturaliza-se a família, a mãe, o pai e a criança. Nada parece ser parte da história e das distorções em relação a esses lugares "naturais".

No entanto, a escolha pela maternidade não significa ser simplesmente "suficientemente boa", como queria Winnicott. Ser mãe, nos dias atuais, ainda significa lutar pela divisão mais justa do trabalho na criação dos filhos, seja a batalha empreendida com a figura paterna –ocupada por seja lá quem for, já que a fantasia erótica vai longe–, seja ela em espaços sociais que deem à mulher condições de sustentar também seus outros desejos.

Com a versão da "mãe suficientemente boa" do psicanalista inglês, acentuada na pena revolucionária de Loparic, voltamos à naturalização dos lugares subjetivos da maternidade, e o amadurecimento do bebê aparece de forma absolutamente dependente das tarefas empreendidas pela mãe –mesmo quando as fases são de independência relativa, torna-se tarefa da mãe não se mostrar disponível. Outro ponto regressivo nesse viés psicanalítico é a tendência ao amadurecimento como possibilidade de integração do sujeito –grande parte disso, vale lembrar, mais uma vez nas costas da "mãe suficientemente boa".

Em Freud tínhamos um sujeito dividido por seu desejo, sem qualquer promessa de integralidade. Desejo recalcado no mesmo passo em que se dá a entrada na cultura. O processo civilizatório exige de cada um de nós renúncias de prazer e agressividade insubornáveis. Desejo, nesse sentido, é resistência face a opressão civilizatória, que coloca a falta numa dada configuração formal. Nas tintas de Loparic, porém, o desejo da mãe desaparece e o da criança se torna mera necessidade. Única existência da mãe é a de cuidar de um ser natural –o animal humano, que é a criança– de forma a permitir a integralidade desse indivíduo.

Contra tal "revolução", porém, sugiro apenas uma ida ao cinema. O filme "De Amor e Trevas", agora em cartaz, foi baseado no romance de Amos Oz e dirigido por Natalie Portman. Trata-se de mais um delicado exemplo do que ocorre com "mães suficientemente boas" –ou a mãe de um dos maiores escritores contemporâneos não teria cumprido bem sua função? Ao final do filme, percebemos como o autor israelense foi capaz de compreender profundamente os dramas vividos por sua mãe. Mas Winnicott e autores revolucionários parecem insistir na cegueira acerca do feminino e esquecer a atualidade da velha pergunta formulada por Freud: "Afinal, o que quer uma mulher?".

ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS PARENTE, 40, é psicanalista e doutora em psicologia social pela USP.


Endereço da página:

Links no texto: