Folha de S. Paulo


717 versos para Peggy

RESUMO Pouco conhecido no Brasil e pouco divulgado mesmo em inglês, Basil Bunting é o único representante do modernismo na poesia britânica. Neste texto, o responsável por trazer pela primeira vez para o português o seu poema máximo, "Briggflatts", comenta os significados dessa longa obra e as dificuldades da tradução.

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O poeta Basil Bunting
O poeta Basil Bunting

Basil Bunting (1900-85) é citado ao menos três vezes em "Os Cantos" de Ezra Pound. Foi ele, o poeta inglês autor do longo poema "Briggflatts", quem descobriu uma das mais famosas fórmulas literárias para a poesia, mencionada pelo poeta norte-americano no livro "ABC da Literatura" (1934): Dichten = condensare, poesia = condensar.

Único representante do modernismo na poesia britânica –já que o norte-americano T.S. Eliot naturalizou-se inglês só aos 39 anos, quando já havia publicado "A Terra Desolada" ("The Waste Land"), por exemplo–, Basil Bunting é uma "avis rara" que exerceu notável influência entre poetas da sua geração, mas ainda se encontra escassamente divulgado na sua língua e permanece, no Brasil, pouquíssimo conhecido, mesmo entre aqueles atraídos pela vanguarda literária.

"Briggflatts", a obra culminante de Bunting, foi publicada em 1966. Entre nós, poetas e críticos como Nelson Ascher e Gerardo Mello Mourão situam o poema de 717 versos entre os mais importantes da literatura mundial –como de resto o fazem numerosos especialistas em relação a essa obra.

O crítico norte-americano Hugh Kenner (1923-2003) considerava o primeiro verso de "Briggflatts" ("Brag, sweet tenor bull", "Gaba-te, doce touro tenor,") "a mais forte abertura de um poema" –depois apenas do primeiro verso dos "Cantos" de Ezra Pound: "And then went down to the ship" ("E então descemos para a nau").

Desde o título se abrem os muitos sentidos de Briggflatts.

O nome refere-se ao vilarejo localizado na Inglaterra, ao norte dos Peninos, onde o poeta viveu um encontro amoroso no início da sua adolescência –descrito já na primeira seção do poema. Mas é também o lugar de nascimento da seita "quaker" no país, que exerceu influência sobre Bunting.

As duas vertentes se unem na definição do crítico britânico Herbert Read (1893-1968), que definiu "Briggflatts" como "um poema de retorno, depois de longas temporadas em terras exóticas [...], uma celebração das origens, do sangue remoto e ancestral, e da paisagem natal". Sutilmente se enredam, assim, os sentidos amoroso-erótico, de afirmação de fé divergente e da força da memória, que conformam em larga medida todo o poema.

"Briggflatts" é ainda, na definição dada pelo seu autor no subtítulo, uma autobiografia –do tipo que, bem entendido, não segue qualquer plano rigoroso ou estritamente factual. A obscuridade e o vigor das referências regionais formam o núcleo do poema e o sustentam do início ao fim.

ESTAÇÕES

"Briggflatts" divide-se em cinco seções: a primeira e a segunda, assim como a quarta e a quinta, são indicativas das estações do ano, a começar pela primavera. A seção central do poema –a terceira– narra o episódio do encontro de Alexandre Magno com o Anjo, cuja inspiração provém de uma lenda persa (Basil Bunting foi exímio tradutor desse idioma).

Numa de suas poucas notas a "Briggflatts", o autor explica: "Lugares-comuns proveem a estrutura do poema: primavera, verão, outono, inverno do ano e da vida do homem, interrompida no meio e equilibrada em torno da viagem de Alexandre aos limites do mundo e sua futilidade, e selada e assinada no fim por uma confissão da nossa ignorância. Amor e traição são aventuras da primavera, a sabedoria dos mais velhos e a distância da morte, quase nada mais do que uma lápide. No verão não há descanso para a ambição e a luxúria da experiência, nunca final".

O poeta inicia uma viagem logo após haver rejeitado o amor surgido por acaso, afastando-se também de sua casa e da terra onde nascera. Essa viagem afinal equivocada vai obrigá-lo a enfrentar muitas vicissitudes: a sociedade urbana, as mulheres que surgem sem amor, a vida no estrangeiro, o jornalismo, a literatura e a guerra.

A estrutura de "Briggflatts" não se limita, porém, às cinco seções constituintes do poema: também está relacionada a uma noção bem peculiar de musicalidade.

Em alguns comentários sobre o poema, Bunting menciona a importância da música de Domenico Scarlatti, em especial suas sonatas, para a composição de "Briggflatts". Em linhas gerais, a influência do músico italiano resultaria em muita condensação, simplicidade de expressão, habilidade sem vaidade. A importância do compositor para o poema é mencionada na seção 4:

"É tempo de considerar como Domenico Scarlatti/ condensou tanta música em tão poucos compassos/ sem jamais uma volta complicada ou cadência congestionada,/ jamais uma vanglória ou um olha-só; e estrelas e lagos/ o ecoam e o bosque tamborila seu ritmo,/ picos nevados se elevam ao luar e ao crepúsculo/ e o sol nasce numa terra reconhecida".

TRADUÇÃO

A importância dada à musicalidade como ferramenta máxima de expressão –Bunting era um defensor da melopeia, decorrência do contato com Pound– impõe dificuldades adicionais à tradução de "Briggflatts".

O recurso frequente às aliterações e às rimas internas, que reforçam a importância dada à sonoridade nesse poema, forçam o tradutor a se satisfazer com um sistema de compensações que busque reproduzir no português, tão diferente do inglês –para começar, desde a métrica anglófona, mais povoada de dissílabos e monossílabos que a lusófona–, o efeito almejado pelo poeta.

Por fim, outra das questões específicas da tradução do poema reside nas palavras escolhidas por Bunting como signo de seu apego às tradições nortistas do seu país.

O vocabulário e a prosódia da região de Northumberland –onde nasceu o poeta e onde está localizada a casa de origem dos "quakers", que leva o nome de Brigflatts (no caso, com um só g)– fizeram com que ele próprio introduzisse notas elucidativas à obra, posto que alguns termos não constam nem mesmo de um bom dicionário de língua inglesa.

Muitos desses procedimentos ocorrem ao longo de "Briggflatts" –e não é do interesse do tradutor indicar onde se encontram e comentar exaustivamente as opções. Traduzir poesia é um ato de amor que, como tal, não deve ser declarado a todo momento. Muitas vezes, o silêncio o conduz melhor.

EROTISMO

O amor e o silêncio nos levam, de novo, à questão autobiográfica que já mencionamos e que está no cerne do poema. Ela é sublinhada com clareza na dedicatória "para Peggy". Peggy Greenbank é o nome daquela que deflagrou no jovem Basil Bunting o amor e o erotismo.

Numa carta ao poeta norte-americano Louis Zukofsky, de 16 de setembro de 1964, Bunting comenta as múltiplas inspirações para "Briggflatts", iniciando pela evocação da jovem: "Peggy Greenbank e todo o seu ambiente, o vale do rio Rawthey, os cerros de Lunedale, a herança viking toda desparecida salvo por um fraco odor, a antiga vida 'quaker', aceita sem pensar e sem suspeitar de que poderia parecer excêntrica: e o que acontece quando alguém deliberadamente rejeita o amor, como então eu fiz –ele busca vingança".

Pode-se assim especular que "Briggflatts", mais longo poema do autor, seja, também, uma carta de amor na qual pede perdão pelo que poderia ter sido e não foi: "uma história interrompida", que assombra a vida do poeta.

A confissão derradeira dessa autobiografia poética está registrada nos versos em que Bunting comenta o acontecimento amoroso ocorrido 50 anos antes, e que permaneceu intacto, no entanto, na sua emoção pura: "She has been with me fifty years" ("Ela tem estado comigo cinquenta anos").

É o encontro final que encerra o poema –e também a descoberta de que foi o amor sentido no passado que o fez evocar todo o conjunto da história de Northumberland, da natureza da sua região e, sobretudo, do trauma da perda. Camadas que se sobrepõem, feitas de língua local, da sonoridade de cada palavra, do sotaque e da entonação presentes em cada sílaba.

Se for possível definir um sentido para "Briggflatts", deve-se recorrer a uma noção ideal de palimpsesto e de técnica de composição, pois o poeta evoca, a todo momento, aspectos da musicalidade e do léxico, da história e da memória pessoal, da natureza e das viagens para compor o painel vasto da sua terrível conclusão: a de que ele havia perdido o grande amor de sua vida.

FELIPE FORTUNA, 53, é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "A Mesma Coisa" e "O Mundo à Solta", ambos de poemas, pela Topbooks.


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