Folha de S. Paulo


Leia trecho de novo livro de J.P. Cuenca, que está na Flip deste ano

SOBRE O TEXTO Este trecho é o capítulo 7 do romance "Descobri que Estava Morto", que sai pela Planeta, em junho, quando também chega aos cinemas "A Morte de J.P. Cuenca", dirigido e protagonizado pelo autor. Livro e longa se inspiram no roubo de identidade real sofrido pelo escritor, que participará da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty, entre 29/6 e 3/7.

Adams Carvalho

- Onde você estava no dia 14 de julho de 2008?

- 2008?

- É.

- Em julho? Em julho de 2008 eu estava na Europa. Fiquei por lá até o fim do mês. Ou talvez agosto ou setembro.

- Férias?

- Trabalho.

- Que trabalho?

- Eu sou escritor.

- Você foi escrever sobre o quê?

- Eu fui convidado pra uns festivais literários. E lancei a tradução de um livro meu na Itália.

- Você é um escritor famoso?

- Não.

- Desculpa, é que nunca ouvi falar. E olha que o seu nome é estranho.

- É.

- O que você escreve?

- Ficção.

- Livro?

- Sim.

- Ficção científica?

- Não. Quer dizer, pode ser também.

- O que tem nos seus livros?

- Não sei. É complicado.

- Como assim, complicado?

- É que se você perguntar pra qualquer escritor...

- Você acha que eu sou ignorante?

- Claro que não.

- Eu sou advogado. Leio muito. Já li muito. Teve uma época em que li todos os livros do Rubem Fonseca. Você conhece?

- Se eu conheço o Rubem Fonseca?

- É.

- Eu gosto muito do Rubem Fonseca. Ele talvez tenha sido o escritor mais...

- Tem uma frase dele que eu adoro. Eu sempre uso.

- Qual é?

- "Não tem nada que uma mulher não possa piorar."

- Essa é boa.

- Não é?

- É.

- Você tem essa mulher aí, por exemplo.

- Quem?

- Essa aí. Tá no registro. Ela é que identificou o defunto com o seu nome, sobrenome e documento. A tal Cristiane.

- Ela está viva?

- Ela foi intimada para esclarecer a história. Mas o endereço não confere.

- Você tem ideia de por que essa mulher fez isso?

- Ih, meu amigo. Tem cada história.

- Eu imagino.

- Ela podia estar dando um golpe de seguro no seu nome.

- No meu nome?

- Sim. Você inclusive pode ser cúmplice.

- Eu?

- Tô brincando. Mas você tinha algum seguro no seu nome em 2008?

- Nunca tive seguro de vida.

- Nunca?

- Não que eu saiba. Nem de saúde eu tenho.

- Você teve algum problema com o seu CPF recentemente?

- Sim. Mas fui culpado por todos eles.

- Nenhum crediário apareceu no seu nome?

- Não.

- Então, no fim das contas, esse sujeito aí usou o seu nome só pra morrer.

- Ele devia estar fugindo de alguém.

- Talvez. Mas por que a mulher dele identificou o falecido com o seu nome e não com o nome verdadeiro? Ele já estava morto, mesmo. Um cara desses não tinha pensão pra receber. Não devia fazer a menor diferença.

Uma jovem surgiu com uma pasta e a deixou sobre a mesa. Era loura e usava calça jeans, seu coldre estava vazio. O inspetor Gomes pediu a ela um café e me ofereceu.

Aceitei. A policial respondeu a minha tentativa de sorriso com um resignado aceno de cabeça e evoluiu por um corredor entre as mesas até a extremidade do andar. Nós dois seguimos o movimento pendular dos seus culotes, nosso único momento de cumplicidade naquela tarde. O inspetor voltou à carga, como se tivesse se lembrado de alguma coisa:

- As pessoas costumam roubar a identidade das outras pra fugir. Pra tentar outra vida. É bem comum malandro tomar a identidade de um morto pra viver com o nome dele. Mas isso aí...

- Isso aí o quê?

- Não sei. É estranho pra caralho.

- Como ele conseguiu a minha certidão de nascimento?

- Você que me responde. Já perdeu alguma?

- Nunca.

- Você deu sorte. Você não percebeu aí na papelada que eles identificaram o corpo depois de uma semana?

- Identificaram?

Ele me mostrou este papel:

- Esse Sérgio aí. Mandaram o defunto tocar piano e foi isso que te salvou.

- Piano?

- As impressões digitais. Só por isso você tem todos os documentos de morto, menos uma certidão de óbito no seu nome. Aí ia ser foda.

- Por quê?

- É uma puta burocracia provar que está vivo. Acha que é só respirar?

- Quem dera.

- Quem dera o quê?

- Que fosse fácil.

- É.

- E quem era esse cara?

- Olha, eu não sei, não. Mas gente boa é que não era.

- Tem como puxar a ficha dele?

- Sim. Mas o sistema tá fora do ar.

- E tem hora pra voltar?

- Se eu soubesse De qualquer maneira, pode ficar tranquilo. Eu vou anotar aqui que você estava em viagem internacional e que desconhecia o fato, bem como a comunicante, essa dona Cristiane aí.

- E agora?

- Tenho seus contatos, se a gente precisar, sabe onde te encontrar. Você está planejando viajar para o exterior nos próximos meses?

- Sim. Por quê?

- Não é nada, não.

- Eu posso ficar com uma cópia desses papéis aí?

- O que você quer fazer com isso?

- Não sei. Quero ler direito. Com calma.

- Porra, você tem sorte. Isso é bem história pra escritor usar.

- É.

- Será que você vai escrever um livro com isso aí?

- Não.

Saí da delegacia. O café nunca chegou.

J. P. CUENCA, 37, escritor e colunista da Folha, autor de, entre outros, "Corpo Presente" (Companhia das Letras).

ADAMS CARVALHO, 37, é ilustrador.


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