Folha de S. Paulo


No novo Átrio dos Gentios, um encontro entre fé e ciência

RESUMO O autor reconstrói seu encontro com o cardeal Gianfranco Ravasi, que vem organizando pelo mundo debates públicos entre Igreja e cientistas sobre os mais diversos assuntos, de genética a robótica. A experiência corrobora a ideia de que, sob prismas diferentes, todos buscamos o sentido da existência.

Pier Marco Tacca - 7.set.2012/Getty Images
O cardeal Gianfranco Ravasi em Como, Itália, em setembro de 2012
O cardeal Gianfranco Ravasi em Como, Itália, em setembro de 2012

Muitos de meus colegas, talvez a maioria deles, consideraria uma grande perda de tempo dividir um palco com um cardeal do Vaticano para conversar sobre ciência e religião. Os mais extremos diriam que fazer isso é dar à religião uma credibilidade que não merece.

Dado que discordo frontalmente desse tipo de atitude radical proveniente do que hoje chamamos de cientificismo, no último dia 11 fui ao Tuca da Pontifícia Universidade Católica do Paraná para conversar com o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho de Cultura do Vaticano. Foi uma noite memorável e inspiradora.

Dentro da tradição historicamente conservadora do Vaticano, fiquei surpreso com a atitude de Ravasi, de franca abertura à ciência. Afinal, esse é o mesmo Vaticano que, apenas em 1992, sob ordem do papa João Paulo 2º, admitiu ter errado ao condenar Galileu Galilei –359 anos antes– por afirmar que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário.

Ravasi está construindo conexões com cientistas do mundo inteiro, organizando debates públicos nos quais são discutidas questões de grande importância para a sociedade, incluindo temas como a pesquisa e o uso das células-tronco na medicina, a ética do uso de drogas nos esportes, a possibilidade de a moralidade ser independente da religião e o nosso futuro como espécie em vista da integração crescente de tecnologias digitais nas nossas vidas.

Para estabelecer uma plataforma de suporte a essa iniciativa, Ravasi seguiu as diretrizes de Bento 16 e ressuscitou o Átrio dos Gentios, um fórum para promover o diálogo construtivo entre cristãos e não crentes, explorando questões relacionadas com a "fé e razão, e cultura secular e Igreja".

Interessante notar que o Átrio dos Gentios original ficava no Segundo Templo de Jerusalém e designava a área onde judeus e não judeus podiam circular livremente, comprar e vender mercadorias, trocar dinheiro ou sacrificar animais. Foi nele que, segundo registram os evangelhos, Jesus teve sua altercação com os negociantes, acusando-os de perverter a santidade do templo. No caso do Átrio mais recente, a ideia é abrir as portas da Igreja para uma discussão franca de questões de interesse para crentes e não crentes, supostamente com menos animosidade.

Abri a noite explicando como a ciência amplifica nossa visão da realidade, criando uma narrativa do mundo natural submetida a revisão constante; expliquei como a ciência contribuiu de forma essencial para mudar nossa visão de mundo no passado e como continuará a fazê-lo no futuro, ao explorarmos os confins do mundo material, do nível subatômico e humano ao cosmológico.

Mencionei Einstein, que nos convida a buscar o engajamento com o "mistério", a fonte que inspira o trabalho criativo tanto nas artes quanto nas ciências. Argumentei que existe uma dimensão espiritual na ciência, na medida em que ela induz uma relação mais íntima e profunda com a natureza.

Argumentei que a ciência moderna está redefinindo nossa posição no cosmo, ao se distanciar da tradição copernicana, segundo a qual quanto mais aprendemos sobre o mundo menos importantes somos.

Essa interpretação é profundamente nociva na percepção pública da ciência, já que diz que a ciência não tem qualquer papel na nossa busca por sentido: qual o sentido da vida se vivemos num universo gigantesco e frio, que pouco liga para nós? Ou, como se escuta dizer em debates mais populares, "a ciência roubou Deus da gente e não deu nada em troca".

Em oposição a isso, propus uma posição pós-copernicana, segundo a qual a variedade de outros mundos no cosmo e a compreensão dos vários passos que a vida teve de dar para evoluir de simples células procariotas até seres humanos são um indicativo de que a vida inteligente é extremamente rara, mesmo que possam existir outros seres inteligentes na galáxia.

MÁQUINAS

Mesmo excluindo Deus, essa conclusão tem consequência imediata, já que nos transforma nessas entidades raras, máquinas moleculares capazes de sentir e pensar. Surpreendentemente, ao menos de forma metafórica, a ciência moderna nos restitui uma posição central no cosmo, como guardiões da vida e da criatividade humana. Concluí propondo a necessidade de uma complementaridade do conhecimento humano que vá além da simples tolerância das diferenças. Existem diferentes modos de entender e examinar a mesma questão, diferentes modos de aprender sobre o mundo.

Por exemplo, ao olharmos para um cálice de vinho, podemos examiná-lo sob várias perspectivas. Bioquimicamente, como produto de um processo de fermentação; opticamente, ao estudarmos sua cor, os reflexos da luz no cristal; fisicamente, como um fluido de certa densidade, em repouso a uma determinada temperatura e pressão atmosférica, no campo gravitacional da Terra; sociologicamente, como produto agrícola em algum país distante com certas leis trabalhistas; ecologicamente, como algo que necessitou o desmatamento de alguma área, o uso de técnicas inseticidas próprias, o preço em poluentes do transporte da fazenda até a loja onde compramos a garrafa.

No entanto, temos toda uma outra gama de aspectos sob os quais examinar o cálice de vinho: sua beleza estética, a simetria das formas, a sensação de tocar e manipular o cálice, o aroma do vinho, seu gosto tão único e, talvez mais importante ainda, a companhia com quem estejamos dividindo o momento, as emoções que vêm dessa presença, o significado da experiência, única para cada um.

Dentro dessa óptica, exigir de um crente uma prova concreta da existência de Deus não faz sentido. Fé é a crença no que não pode ser (ou não foi) provado.

CÉU E CÉUS

Por outro lado, argumentar que textos religiosos explicam ou podem prever fenômenos naturais de forma científica é também uma proposta absurda. Como disse Galileu, a Bíblia não foi escrita para descrever como vão os céus, mas como se vai ao céu.

Felizmente, Ravasi não é um literalista –ou eu não teria aceitado dialogar com ele. Pelo contrário, citou Santo Agostinho como alguém que já havia reconhecido os perigos de usar a Bíblia como texto de valor científico.

Aqueles que se dizem crentes constituem em torno de dois terços da população mundial, mais do que 4 bilhões de pessoas. Classificar sua fé como uma espécie de delírio ou loucura não leva a nada. Ravasi desconsidera os pronunciamentos mais incendiários de ateus radicais sugerindo, como alternativa, uma troca aberta de ideias.

Em determinado momento, propôs três modos de olhar para o mundo: para baixo, ao explorarmos a matéria que constitui as coisas; para frente, na relação com outras pessoas e seres vivos; para cima, na busca por alguma forma de transcendência.

Precisamos dos três modos, mesmo que se manifestem de formas diferentes para cada um. Deus foi evocado raramente na fala de Ravasi, defendendo a necessidade de uma busca pluralista pelo conhecimento, que ressoa bem em minha proposta de complementaridade do saber.

Ravasi mencionou o biólogo americano Stephen Jay Gould e sua proposta de "magistérios que não se superponham" (do inglês Non-Overlapping Magisteria, ou Noma), que já mencionamos aqui numa outra oportunidade. Segundo Gould, ciência e religião deveriam existir em paralelo, sem interferências de uma na outra.

Ravasi saudou a iniciativa de Gould, que, afinal, põe a religião em pé de igualdade com a ciência. Porém sugeriu que seria necessário ir além, de modo a criar uma visão mais coesiva. Brincou que, na época de Galileu, seria inconcebível ter um cientista dividindo o palco com um cardeal. Naquela época, eram os homens da Igreja Católica que se recusariam a dividir o palco com um mero cientista.

"Os tempos mudaram", disse, "e devemos mudar com eles". O cardeal pareceu-me completamente sincero e autêntico. Vi com alívio que o Vaticano hoje tem pessoas como Ravasi em postos de comando. Ele está disposto a escrever um novo capítulo na longa e tortuosa história do debate entre ciência e igreja, com um final mais feliz do que o de seus antecessores.

Ficou claro para os presentes que, nesses diálogos, a questão não é tentar convencer o outro. Esse seria um exercício supérfluo, como já deveríamos ter aprendido. Trata-se de estar aberto para ouvir o outro, sem recorrer aos recursos limitados de um tribalismo no qual o "outro", aquele com opiniões diversas da sua, é necessariamente um ser inferior que precisa ser ou eliminado ou convertido.

Ficou claro, também, que um diálogo desse tipo seria impossível entre facções radicais. Não poderia conversar com um literalista ou mesmo com um primo distante meu, que é judeu ortodoxo, sobre ciência e fé. Os argumentos de um literalista são absurdos para a maioria dos cientistas.

Somos criaturas finitas, num mundo cheio de desafios, com mais perguntas do que respostas. Fatos, valores, crenças e tradições formam uma rica teia em que é fácil se perder. A essência de um diálogo construtivo entre a fé e a ciência é reconhecer que, mesmo guardando todas as diferenças, a busca por sentido é de cada um e de todos nós. A perplexidade diante do fato de que estamos vivos, mesmo se a expressamos de modo diverso, é parte da nossa essência.

MARCELO GLEISER, 57, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College (EUA), é autor de "A Ilha do Conhecimento" (Record).


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