Folha de S. Paulo


Leia trecho de "O Fim da História", romance de Lydia Davis

SOBRE O TEXTO Primeiro romance –e até hoje o único– da autora consagrada por seus contos, especialmente os de curtíssima extensão, "O Fim da História" sai no Brasil no fim de maio, pela editora José Olympio.

Por fim, depois de muito andar, às vezes na direção certa, outras vezes na direção errada, cheguei à rua dele. Era a hora do rush. Homens e mulheres em trajes formais passavam por mim subindo e descendo a rua. O trânsito era lento. O sol estava baixo, e a luz que incidia nos prédios era de um amarelo escuro. Eu estava surpresa. Não imaginava que sua parte da cidade seria as­sim. Nem acreditava que aquele endereço existia. Mas o prédio estava lá, com três andares de altura, pintado de azul-claro, um pouco desgastado. Estudei o prédio do outro lado da rua, parada num degrau ao qual fora incrustada uma fileira de ladrilhos que formavam o nome de uma farmácia, embora a porta atrás de mim se abrisse para um bar.

Por mais de um ano agora, desde que anotara aquele endereço na agen­da, eu imaginara muito precisamente, como em um sonho, uma ruela ensolarada com sobrados amarelos e pessoas entrando e saindo, subindo e descendo os degraus da entrada, e também me imaginara sentada num carro posicionado diagonalmente do outro lado da rua da casa dele, observando a porta e as janelas. Eu o via saindo da casa, pensando em outras coisas, de cabeça baixa, descendo com pressa os degraus. Ou descendo aqueles degraus mais lentamente acompanhado de sua esposa, como duas vezes eu já o havia visto sem que ele soubesse, uma vez de longe quando estavam em uma calçada ao lado de um cinema e uma vez na janela de seu apartamento através da chuva.

Eu não tinha certeza de que conversaria com ele porque, quando o imaginava, me perturbava a raiva em seu rosto. Surpresa, depois raiva, e depois temor, porque ele tinha medo de mim. Seu rosto era neutro e rígido, suas pálpebras caíam e ele lançava a cabeça um pouco para trás: o que eu faria com ele agora? E daria um passo atrás como se isso de fato o tirasse do meu alcance.

Embora tivesse visto que o prédio existia, eu não acreditava que seu apartamento existiria. E, se o apartamento existisse, não acreditava que encon­traria seu nome etiquetado ao lado da campainha. Agora cruzei a rua e entrei no prédio onde ele vivera, talvez até recentemente, com certeza havia menos de um ano, e li os nomes ARD e PRUETT num cartão branco ao lado do botão do interfone de seu apartamento, o número 6.

Percebi mais tarde que essa dupla estranha, sem gênero, Ard e Pruett, de­via ser a descobridora do que quer que ele tenha deixado para trás: os pedaços de fita colados nas coisas, os clipes e alfinetes entre as tábuas do chão, os pegadores de panelas ou os potes de tempero ou as tampas de panela atrás do forno, a poeira e as migalhas nos cantos das gavetas, as esponjas duras e manchadas embaixo da banheira e da pia da cozinha que ele alguma vez usara energicamente para limpar uma bacia ou um balcão, os fios de roupa pendurados nas partes mais escuras do armário, lascas de madeira, buracos de pregos no gesso com manchas e arranhões ao redor ou perto deles que pareceriam aleatórios simplesmente porque Ard e Pruett não saberiam qual havia sido seu propósito. Senti uma conexão inesperada com essas duas pessoas, ainda que elas nem me conhecessem e eu nunca as tivesse visto, porque elas, também, haviam vivido algum tipo de intimidade com ele. É claro que poderiam ter sido inquilinos anteriores os que encontraram as coisas deixadas por ele, e talvez Ard e Pruett tivessem encontra­do as marcas de uma pessoa completamente diferente.

Porque eu tinha que ir tão longe quanto possível para encontrá-lo, to­quei a campainha. Se não o encontrasse desta vez, deixaria de tentar. Toquei, e toquei de novo, mas não houve resposta. Fiquei parada na rua apenas o bastante para sentir que tinha chegado, por fim, ao ponto final de uma jornada necessária.

Eu havia me disposto a andar até um lugar distante demais para se chegar a pé. Havia continuado mesmo quando já era tarde, e quando estava no limite das minhas forças. Parte da minha força havia retornado quando me apro­ximei do lugar onde ele vivera. Agora eu ultrapassava sua casa, em direção a Chinatown e ao bairro da luz vermelha, passando pelos galpões da baía, pela enseada, como eu pensava, tentando lembrar a cidade, e ainda que ele não morasse mais naquela casa, e eu estivesse tão cansada, e tivesse que continuar andando, e houvesse mais morros para subir por todos os lados, ainda assim eu me sentia calma por ter estado lá, calma como não me sentia desde que ele me deixara, como se, mesmo que ele não estivesse lá, eu o houvesse encontrado mais uma vez.

Talvez o fato de que ele não estivesse lá tenha possibilitado esse retorno, e tenha possibilitado um fim. Porque, se ele estivesse lá, tudo teria que continuar. Eu teria sido forçada a fazer algo, nem que fosse ir embora e pensar naquilo a uma grande distância. Agora eu seria capaz de parar de procurar por ele.

Mas o momento em que eu soube que havia desistido, o momento em que eu soube que havia encerrado a busca, veio um pouco mais tarde, quando estava sentada numa livraria naquela cidade, sentindo na boca o gosto amargo de um chá barato que um estranho me trouxe.

Eu tinha ido até lá para descansar, num prédio antigo cujo piso de madeira crepitava, uma escadaria estreita que conduzia a um pavimento inferior, a iluminação fraca do porão, e um andar superior mais limpo e mais claro. Eu atravessara a livraria, descera e subira a escada, percorrera os cantos de cada estante. Sentei-me para olhar um livro, mas estava tão cansada e sentia tanta sede que não conseguia ler.

Fui até o balcão da frente, próximo à porta. Um homem sombrio em um cardigã estava parado ali atrás, empilhando livros. Perguntei se havia água, se eu podia tomar um copo d'água, embora soubesse que era improvável haver água ali, numa livraria. Ele disse que não tinha, sugerindo que eu fosse a um bar próximo. Eu não disse nada, me virei e subi alguns degraus até a sala da frente com vista para a rua. Fiquei sentada ali numa cadeira, descansando enquanto as pessoas se moviam em silêncio ao meu redor.

Não era minha intenção ser rude com o homem, eu simplesmente não conseguia abrir a boca e falar. Teria tomado todas as minhas forças empurrar o ar para fora dos pulmões e emitir um som, e teria me machucado ao fazer isso, ou me tomado algo que não me sobrava naquele momento.

Abri um livro e olhei uma página sem ler, depois folheei outro livro do início ao fim sem entender o que via. Pensei que o homem atrás do balcão devia achar que eu era uma indigente, já que a cidade estava cheia de indigentes, particularmente do tipo que apreciaria se sentar numa livraria quando a tarde se fizesse mais escura e mais fria, e pediria a ele um copo d'água, e talvez até seria rude se ele não lhe desse nada. E por ter pensado, diante da sua expressão de surpresa, e talvez de preocupação, quando dei as costas sem responder, que ele estava me confundindo com uma indigente, de repente senti que podia ser o que ele pensava que eu era. Outras vezes já me sentira sem nome e sem rosto, caminhando pelas ruas da cidade à noite ou na chuva sem que ninguém soubesse onde eu estava, e agora esse sentimento havia sido inesperadamente confirmado pelo homem do outro lado do balcão. Enquanto ele me olhava, eu flutuava para longe do que pensava ser, e me tornava neutra, sem cor, sem sentimento: havia chances iguais de ser o que eu pensava que eu era, aquela mulher cansada pedindo água, e o que ele pensava que eu era, e talvez já não existisse nada que se pudesse chamar de verdade, algo a nos unir, então ele e eu, encarando-nos um ao outro através do balcão, estávamos mais separados do que dois estranhos costumam estar, isolados como se numa neblina, as vozes e os passos perto de nós silenciados, um pequeno poço de claridade ao nosso redor, até que eu, em meu novo papel de indigente, cansada e desorientada demais para falar, desviei o olhar sem responder e segui até a outra sala.

Mas, enquanto eu pensava nisso, ele veio até o lugar onde eu estava sentada, perto de uma estante alta. Inclinou-se em minha direção, gentilmente perguntou se eu aceitava uma xícara de chá e, quando a trouxe, agradeci e bebi. Era forte e quente, mas tão amargo que secou a minha língua.

Esse parecia ser o fim da história, e por um tempo foi também o fim do romance –havia algo tão final naquela xícara amarga de chá. Então, embora ainda fosse o fim da história, eu o coloquei no início do romance, como se precisasse contar o fim primeiro para seguir e contar o resto. Teria sido mais simples começar pelo começo, mas o começo não significava muito sem o que veio depois, e o que veio depois não significava muito sem o fim. Talvez eu não quisesse ter que escolher um lugar para começar, talvez eu quisesse que todas as partes da história fossem contadas ao mesmo tempo. Como diz Vincent, muitas vezes eu quero mais do que é possível.

LYDIA DAVIS, 68, escritora e tradutora norte-americana, é autora do livro de contos "Tipos de Perturbação" (Companhia das Letras).

JULIÁN FUKS, 34, escritor e jornalista, é autor de "A Resistência" (Companhia das Letras).

ADRIANA KOMURA, 33, designer gráfica e ilustradora, é editora de arte da "Serafina".


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