Folha de S. Paulo


Ecos de Eco: músico brasileiro lembra elogio recebido do escritor italiano

Há um mês Umberto Eco nos deixou; revisitando lembranças, recordo a sequência de encontros que tive a sorte de ter com ele.

O primeiro foi em 1992, numa livraria em Paris, onde eu morava na época e onde ele lançava "Os Limites da Interpretação", com palestra seguida de autógrafos.

Ali, após ouvi-lo dizer, na palestra, que cada ser humano tem uma grande questão na vida (a dele era: "Por que isso é verdadeiro?"), entreguei-lhe meus dois discos LPs, "Ovnis no Óbvio" e "Éra", e meu livro de poesia. Conversamos um pouco e, quando eu disse que era brasileiro, ele respondeu: "Tenho muita saudade" –assim mesmo, em bom português.

Reencontrei-o uns seis meses mais tarde no Collège de France, também em Paris. Perguntei se tinha ouvido os meus dois discos e, para minha grande surpresa, ele disse vivamente que sim e que tinha gostado muito!

Acabei fazendo o curso que Eco daria em seguida no Collège de France, "La Quête d'une Langue Parfaite dans l'Histoire de la Culture Européenne" (A busca de uma língua perfeita na história da cultura europeia). O curso durou um ano acadêmico (1992/93).

Umberto Eco casava vitalidade e erudição com a maior naturalidade. Às vezes, ele quebrava o protocolo e atendia alguns frequentadores –eu entre eles– nos bastidores da sala de aula depois do horário. Uma vez nos disse que sonhava na língua do país em que estivesse, neste caso o francês.

Lembro ainda de coisas ótimas que disse durante as aulas; por exemplo, que as grandes obras de arte possuem um amplo espectro que vai do mais profundo ao superficial. E citou "Hamlet" e a "Nona Sinfonia" de Beethoven.

(Acho essa afirmação um espelho do próprio Umberto Eco, que ia sem preconceito do mais erudito ao mais popular –não qualquer coisa, claro–, geralmente com brilhantismo e fluidez.)

Eco disse, no final do curso, que é crime intelectual querer ser um oráculo geral e falar sobre tudo. Um intelectual deve falar sobre o que conhece.

(Corte: num domingo de sol, eu passei de bicicleta por ele ao lado do rio Sena e gostei de vê-lo com a esposa admirando os pássaros.)

No fim do curso, Eco convocou os alunos assíduos para encontrá-lo numa outra sala onde nos entregaria os atestados de frequência. Quando chegou a minha vez, ele, muito energético e ágil, me escreveu também a declaração –manuscrita e elogiosa– aos dois discos que eu havia lhe dado antes ("Caro Sérgio Rojas, Obrigado. Recebi os seus discos e fiquei muito contente. São muito bons!"). Ainda conversamos um pouco sobre o concretismo.

Acervo Pessoal
Bilhete do escritor Umberto Eco ao músico brasileiro Sérgio Rojas
Bilhete do escritor Umberto Eco ao músico brasileiro Sérgio Rojas

Ecos de Eco: invenção, erudição viva, o prazer do texto e da fala, rigor, vigor, verdade, amabilidade, poesia e ciência no mesmo múltiplo ser. Obrigado, Umberto Eco. Que continuem soando seu silêncio e seus ecos eternos.

SÉRGIO ROJAS, 55, é compositor, músico e poeta carioca.


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