Folha de S. Paulo


Leia 'Olhares Cruzados', conto inédito de Evando Nascimento

Abro a janela do quarto, a luz penetra em fachos com violência, estão me vendo. Vou tomar o café da manhã, sei que estão vendo. Sigo para o banheiro, sento no vaso, lavo as mãos, escovo os dentes, tomo um banho primeiro morno, depois frio, ligo, desligo o aquecedor, estão vendo. Ponho a cueca, as calças, a meia, a camisa, o cinto, os sapatos, a gravata, o terno, faço uma ligação para Mirtes, estão vendo e ouvindo. Desço, pego a moto, cruzo rapidamente lentas avenidas, até chegar ao prédio onde trabalho, entro, subo no elevador, mais do que nunca estão vendo, até pedem que sorria. Sorrio e aceno.

Passo o dia inteiro assinando papéis, analisando orçamentos, falando ao celular, tendo reuniões presenciais e em videoconferência, vão vendo e anotando. No almoço, uma pequena pausa nas tarefas, vou com os colegas ao restaurante da esquina, peço o de sempre, depois volto, trabalho, trabalho, trabalho. Já no final da tarde, saio, subo novamente na moto, atravesso parques, tento escapar dos engarrafamentos, seguem me vendo.

Ilustração Alex Cerveny

Chego a meu prédio, pego a correspondência, troco palavras com o porteiro, não tem jeito: estão vendo. Subo no elevador, abro a porta do apartamento, acendo a luz, observo a sala espaçosa, a estante com livros, o janelão que dá para os flamboyants em flor, a esta hora na escuridão lá fora, verifico se as coisas continuam no lugar, em cada canto, também estão vendo. Tomo o banho da noite, Mirtes liga dizendo que vai passar em casa, preparo um simples espaguete com molho de tomate e manjericão, que ela tanto ama, abro a garrafa de um delicioso borgonha, estão nos vendo.

Vamos para a cama, longos minutos de carinho e tesão, suores, doces palavrões, tapinhas, mordidas no pescoço, na orelha, e o gozo arrebatador, o dela um pouco mais longo, estão vendo e registrando. Meu temor seria se... Ela vai embora, tem muitas tarefas na manhã seguinte, dirige uma escola, prefere dormir em casa para poder preparar tudo, beijo-a, volto para a cama, durmo um sono intranquilo –apesar do escuro, estão vendo a noite toda com dispositivo de captação infravermelha.

Nada lhes escapa em meu dia a dia, tudo sob controle, não deixam de ver e ouvir jamais, cada detalhe, cada suspiro. Por enquanto, o sonho é a única coisa que não conseguem observar diretamente, ainda. Preciso tirar férias, não aproveitei as do ano passado, a empresa me exige demais. Já de manhãzinha, logo ao despertar, leio algumas mensagens na tela, respondo, estão com certeza vendo e lendo.

No final de semana, vou com o filho ao Jardim Botânico, onde raízes brotam, frutos apodrecem, pássaros acasalam, orquídeas iluminam as manhãs numa rajada de cores, o vento esparge perfumes; a despeito do cenário bem natural, não há dúvida, estão nos vendo e transcrevendo tudo. Ele é um pré-adolescente, sua mãe e eu nos separamos faz dois anos, de forma amical e dura, a fim de poupá-lo de nossa indiferença dolorida, estavam nos vendo. Explico-lhe tudo o que sei sobre árvores, os nomes, a época de floração, os possíveis frutos, repasso o que aprendi com meu pai. Deveria ter me tornado biólogo, especialista em botânica, amo as plantas –estão vendo–, mas optei por ganhar mais dinheiro como executivo, me formei em economia.

Fabinho faz muitas perguntas, de tudo quer saber, tem uma visão colorida e múltipla do mundo, talvez se torne artista, no mínimo arquiteto, paisagista, gosta de rabiscar figuras, sobretudo vegetais, estão vendo, sim. Não tento influenciá-lo, apenas ponho o que sei, vi, ambicionei a sua disposição. Meu guri é como uma página ainda não escrita, tudo absorve e transforma de imediato. Estão vendo mais uma vez, então aproveitamos para tirar algumas fotos e fazer microvídeos com a câmera.

Vivo uma vida pacata e insatisfatória, como todas talvez, não imagino ninguém plenamente contente com suas pequenas e médias realizações. Acabei não indo muito longe, igual ao comum da gente: várias frustrações, alguns contentamentos, em geral bastante tédio, e estão sempre nos vendo. Já pensei em desistir da vida, não por sofrimento, mas, digamos, por comodidade, daria no mesmo, apenas encurtaria a duração. Porém estavam me vendo e, sem que pedisse, vieram em meu desesperado socorro, um contratempo, não voltei a tentar (disseram que minha existência é demasiado preciosa). Em qualquer situação, lugar, instante, dimensão, estão vendo incessantemente. Sei que planejam instalar um pequeno aparelho em meu cérebro e no de outros para verificar nossos pensamentos se produzindo, têm tecnologia para isso, é questão de prazo e investimento, já estão vendo.

Cheguei a inventar um código hipercifrado para comunicação exclusiva com os íntimos, estavam vendo e decifraram rapidamente. Encontrei, todavia, provisoriamente uma solução: passei a fazer desenhos intrincados, a mais rudimentar das tecnologias, e ainda estão vendo, porém com dificuldade. Ando com um lápis e um bloco de tamanho médio por toda parte, esboço um pássaro, uma palmeira, um par de botas velhas, uma prancha de surfe –meu esporte favorito, quando jovem–, um veículo antiquado, uma cópia de Da Vinci, misturo tudo, invento híbridos, estão vendo, mas não entendem. Procuro assim redesenhar minha vida, embora saiba que estão vendo e revendo, analisando e processando, até chegar a uma solução. Desenhei muito quando adolescente e agora descobri esse modo de despistá-los, praticando uma arte elementar, a única talvez capaz de frustrar suas expectativas. Pois, afinal, para que serve o desenho pelo desenho num mundo hipertecnológico?

Ajudou bastante o fato de ter abandonado toda a parafernália no dia a dia de forma metódica, só uso o indispensável no escritório; em casa, apenas silêncio, concentração, música, leitura, conversa, amor e desenho. Continuam vendo e se espantando por um homem de finanças perder tempo com essas formas toscas. Somente o design inteligente lhes interessa, ou então o projeto para construir a derradeira ultramegatorre na Ásia. Enquanto isso, prefiro traçar um boi, uma pulga, uma folha de relva, uma curva, sobrepondo formas, letras, palavras, sinais, cores –estão vendo?

EVANDO NASCIMENTO, 55, é escritor e ensaísta, autor de "Cantos Profanos" (Globo) e de "Derrida e a Literatura" (É Realizações).

ALEX CERVENY, 52, é artista plástico.


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