Folha de S. Paulo


A desigualdade não é imoral? Sobre as sutilezas do conceito de suficiência

RESUMO "On Inequality", ensaio do filósofo Harry G. Frankfurt, motivou textos de João Pereira Coutinho e Contardo Calligaris em suas colunas na Folha. Professor retoma o texto de Frankfurt para criticar a forma como os colunistas usaram o argumento do norte-americano, dispensando o valor moral do debate sobre a desigualdade.

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É difícil encontrar alguém que seja (ao menos abertamente) a favor de uma grande desigualdade de riquezas entre as pessoas. O fato de o Brasil ser um dos países mais desiguais do mundo é visto de forma praticamente unânime como negativo, enquanto a diminuição da desigualdade ocorrida nas últimas décadas (deixemos de lado as controvérsias sobre sua real magnitude e importância) é quase universalmente celebrada.

Que nível de desigualdade seria correto ou aceitável, e o que faz da desigualdade um mal, porém, são questões que não alcançam esse mesmo grau de consenso. Pelo contrário, sobre esses pontos inter-relacionados há significativo debate e controvérsia tanto na sociedade em geral como no mundo especializado da filosofia política.

Nesse último, o debate chega a níveis de abstração elevados, e um dos pontos mais controvertidos é se a igualdade é um valor em si mesmo (intrínseco), ou se tem valor apenas instrumental e contingente, isto é, dependente dos eventuais bons resultados que possa produzir.

É raro que tais discussões filosóficas, por importantes e interessantes que sejam, influenciem diretamente o mundo do debate público e da ação política. E, quando isso ocorre, é geralmente uma versão deturpada –por vezes até oposta– das ideias originais que sobrevive. Uma espécie de telefone sem fio filosófico.

Dois textos recentemente publicados nesta Folha, ambos em colunas do caderno "Ilustrada", invocam argumentos filosóficos no debate sobre a desigualdade.

Em "A Desigualdade Não É Imoral" (29.dez.2015), João Pereira Coutinho aplaude o argumento do filósofo norte-americano Harry G. Frankfurt segundo o qual "aquilo que devemos considerar 'imoral' não é a desigualdade 'per se'". "O que é relevante é a existência de pobreza", escreve.

Contardo Calligaris retoma o mesmo filósofo em "Desigualdade" (18.fev.2016), afirmando que "o escândalo não é que Bill Gates tenha infinitamente mais do que eu; o escândalo é que alguém, aqui ou onde quer que seja, não tenha o necessário".

Embora nada haja a reparar no resumo do argumento do filósofo americano feito pelos colunistas, os problemas surgem quando eles buscam tirar desse argumento conclusões práticas.

Segundo Coutinho, o argumento sugere que "a política deve abandonar as suas fantasias igualitaristas e concentrar-se numa 'doutrina da suficiência'". Para Calligaris, "Frankfurt mostra que a desigualdade está nos distraindo do verdadeiro problema moral" –a saber "a existência da pobreza".

ERRO

Nem Frankfurt nem outros filósofos igualmente convencidos da ausência de importância moral intrínseca da igualdade endossariam tais conclusões. Pelo contrário, e exatamente para evitar esse tipo de erro, o norte-americano fez questão de afirmar, em "On Inequality" [Princeton University Press, 106 págs., R$ 36,69 em e-book na Amazon.com.br], o ensaio citado pelos dois colunistas, que o que diz ali não "tem implicação alguma em termos de políticas sociais [...] que seja desejável perseguir ou evitar".

Para eliminar qualquer dúvida a respeito de sua posição pessoal sobre políticas igualitaristas, faz a ainda a seguinte advertência aos leitores incautos:

"Rejeito categoricamente a presunção de que o igualitarismo, de qualquer variedade, seja um ideal com qualquer importância moral intrínseca. Mas isso enfaticamente não quer dizer que eu tenha em geral inclinação a endossar ou ser indiferente às desigualdades atuais, ou que eu me oponha aos esforços de eliminá-la. Na verdade, eu apoio muitos desses esforços".

Portanto, mesmo que aceitemos que a igualdade não tenha valor moral intrínseco algum, isso não diz absolutamente nada sobre a adequação de políticas públicas igualitárias. Como lembra de novo o próprio Frankfurt, há várias razões pragmáticas e contingentes que justificam, em várias circunstâncias, essas medidas igualitárias para "facilitar o alcance de outros objetivos sociais desejados".

A desigualdade brasileira é tão gritante que seria até desnecessário listar aqui os benefícios sociais que políticas públicas igualitárias poderiam gerar, no sentido contingente e pragmático citado, como maior coesão social, democracia mais saudável e economia mais competitiva –para ficar apenas nos citados pelo próprio Frankfurt.

Pode-se e deve-se, é claro, discutir vários aspectos dessa relação instrumental entre benefícios sociais e medidas que visem à maior igualdade. O que não vale é declarar vitória antecipada e com suposto apoio de argumento filosófico alheio que não autorize as conclusões defendidas.

É também preciso lembrar que o ataque de Frankfurt em "On Inequality" –na verdade uma republicação de dois artigos de 1987 e 1997– tem endereço preciso e estreito: "a doutrina que diz ser desejável que todos tenham a mesma quantidade de renda e riqueza".

Ora, a maior parte das pessoas que enxergam um problema moral na desigualdade não adota esta visão radical e implausível. Como afirmei no início, embora haja consenso contra os elevados níveis de desigualdade existentes no Brasil e em outras partes do mundo, não o há em relação ao que seriam níveis adequados, e a igualdade absoluta, ainda que fosse de fato possível, não é certamente um dos candidatos mais populares.

INSUFICIÊNCIA

Feita essa importante ressalva, parece justo questionar se o argumento de Frankfurt, embora persuasivo sobre a inexistência de valor moral intrínseco na igualdade econômica absoluta, não estaria equivocado ao transferir o foco imediatamente para o outro extremo do espectro: a insuficiência.

A questão que se põe é: não haveria fortes razões –não meramente pragmáticas e contingentes–, digamos razões de princípio, para nos preocuparmos moralmente também com a desigualdade econômica (e não apenas com a pobreza), sobretudo quando ela é excessiva como no Brasil?

Não há espaço aqui para ingressar a fundo nesse outro importante, controvertido e milenar debate da filosofia política sobre quais desigualdades são e quais não são moralmente justificadas. Há uma literatura imensa sobre o assunto cujo suposto "erro de foco" Frankfurt buscava corrigir com seus artigos, sem sucesso na minha opinião.

A desigualdade econômica excessiva, além das mazelas sociais acima mencionadas, prejudica, quando não destrói, outros tipos de igualdade cujo valor moral é praticamente inquestionável, como a igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades.

Até que ponto algo (a desigualdade econômica) pode ser considerado intrinsecamente irrelevante do ponto de vista moral quando prejudica sistematicamente a sobrevivência de outros valores?

O próprio Frankfurt parece se dar conta disso quando afirma que "nosso foco básico deve estar em reduzir tanto a pobreza como a afluência excessiva ["¦] para reparar uma sociedade em que muitos têm muito pouco, enquanto outros têm o conforto e a influência que acompanham quem tem mais que o necessário".

Por outro lado, e especialmente àqueles que, como Frankfurt, dizem se sensibilizar moralmente com a pobreza, mas não com a desigualdade em si, é importante lembrar que ambas não existem em planetas distintos, como o argumento parece pressupor, ao buscar dissociar totalmente a riqueza dos milionários da pobreza dos miseráveis.

Não é necessário lançar mão de teorias radicais implausíveis para enxergar que ambas estão, de fato, conectadas, ainda que obviamente não em relação binária e simplista de causa e efeito, como no argumento que vê toda propriedade como roubo.

A riqueza e a pobreza dos indivíduos é em grande parte resultado da combinação complexa de características individuais e interações sociais sob regras políticas e econômicas decididas de forma mais ou menos democrática dependendo da sociedade. A desigualdade econômica entre o rico e o pobre exige sim, portanto, uma avaliação moral conjunta, do prisma da igualdade, seja qual for o resultado, pois é fruto de um sistema socioeconômico e jurídico único.

Extirpar a pobreza e analisá-la isoladamente com a lupa da moralidade é como investigar o problema de uma árvore ignorando as condições do solo, do clima e sua relação com a floresta ao redor. Minha casa não foi roubada de ninguém, mas isso não me imuniza de questionamentos, válidos, sobre a justificação moral da desigualdade existente entre mim e os socialmente menos favorecidos.

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 44, é professor da faculdade de direito Dickson Poon e afiliado do Brazil Institute, ambos do King's College de Londres.


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