Folha de S. Paulo


Funcionários do nhoque na Argentina

Em um único fim de semana, ruas, praças e parques de Buenos Aires se encheram de jovens e adultos para shows e eventos culturais gratuitos. Não foi toda a população bonaerense, porém, que quis conferir as atrações.

Alguns torceram o nariz porque os festivais foram organizados pela esquerda ligada ao kirchnerismo –que, antes mesmo de o presidente de centro-direita Mauricio Macri completar dois meses no cargo, já se mobilizava contra o governo.

No fim da tarde da sexta-feira 29 de janeiro, houve música ao vivo, instalações artísticas e distribuição de nhoque feito na hora e na rua. Tudo diante do faraônico centro cultural Néstor Kirchner, uma das principais obras do governo de Cristina Kirchner.

Enrique Marcarian-29.jan.2016/Reuters
Manifestante em Buenos Aires em 29 de janeiro
Manifestante em Buenos Aires em 29 de janeiro

O nhoque estava fresquinho. Os cordões de massa eram feitos e cortados na hora por jovens em uma mesa de madeira montada no meio da rua. O molho veio pronto, e a iguaria foi servida em copos ou vasilhas de plástico a todos que aguardavam na fila.

A festa era, antes de tudo, um ato contra a demissão de 600 dos 710 funcionários que trabalhavam no centro cultural até Cristina deixar o poder, em 9 de dezembro.

E o nhoque, uma remissão ao modo como os servidores que foram contratados nos últimos anos do kirchnerismo estão sendo chamados. Os macristas os acusam de comparecerem ao trabalho apenas para receber, uma vez por mês, no dia 29 –data do tradicional nhoque da fortuna.

DANÇA FOLCLÓRICA

A umas cinco quadras dali, em uma gigante tenda branca montada na praça de Maio, a noite foi de "chacarera".

Nessa dança folclórica argentina, os passos podem ser feitos em pares ou em roda. Braços para cima, em forma de U, e dedos estalando.

O baile fazia parte da programação noturna de um acampamento montado há semanas na frente da Casa Rosada e cercado por bandeiras indígenas e imagens de Che Guevara.

O movimento ali defende a liberação de Milagro Sala, líder de uma organização kirchnerista que, durante o governo de Cristina, recebeu dinheiro para financiar moradias públicas.

Acusada de desviar verba, Sala foi presa sob a denúncia de incitar a desordem. Ela liderava uma ocupação na província de Jujuy e pedia para que sua organização não deixasse de receber recursos do novo governo, alinhado a Macri. Sem apresentações artísticas, seu acampamento contava com várias piscinas espalhadas pela praça principal da capital da província.

LETRA ENGAJADA

No domingo do mesmo fim de semana, o evento era um festival de bandas no parque Centenário, próximo do novo bairro da moda, Villa Crespo e de Abasto –região onde viveu Carlos Gardel, um dos maiores nomes do tango.

Bersuit Vergarabat, um grupo argentino que une rock a ritmos latinos, como "cumbia" e "chacarera", era o principal nome entre as 12 bandas que se apresentavam.

Como não podia deixar de ser, as letras das músicas do Bersuit são repletas de críticas ao sistema político e à sociedade.

Os shows eram intercalados por discursos longos e sonolentos de ativistas políticos, muitos deles jornalistas recém-demitidos do Grupo 23.

A endividada companhia havia se beneficiado durante a era kirchnerista, que mantinha volumosos anúncios nos veículos. Agora, porém, passa por um momento de crise, e parte de seus funcionários não recebe desde novembro.

BANDEIRAS E ESTANDARTES

Os trabalhadores do Grupo 23 eram os organizadores do festival, e grande parte deles aplaudia com empolgação as falas sem fim que entremeavam as apresentações.

Os funcionários e demitidos da empresa também defendem o governo de Cristina Kirchner. Ao calor de 30º C do verão argentino, tremulavam bandeiras com o rosto da mandatária e do seu marido, Néstor (1950-2010), diante do palco montado para o festival.

Estandartes de partidos socialistas e do La Cámpora (organização liderada pelo filho de Cristina, Máximo Kirchner) também estavam espalhados pelo parque. Os jovens vestiam camisetas nas quais se lia "juventude peronista".

LUCIANA DYNIEWICZ, 30, é correspondente da Folha em Buenos Aires.


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