Folha de S. Paulo


ponto crítico

Cavaletes de Lina realizam duas narrativas opostas

"Acervo em Transformação - A Coleção do Masp de Volta aos Cavaletes de Cristal de Lina Bo Bardi" realiza a instalação anunciada por Adriano Pedrosa, diretor artístico, em sintonia com Heitor Martins, presidente, desde o início da gestão. Os cavaletes estão apresentados em rigorosa revisão técnica e mantidos em sua poética de origem distante dela apenas por não poder contar com a necessária transparência em relação à cidade. Nesse caso há ainda um importante desafio a ser enfrentado: encontrar um dispositivo que proteja as obras sem bloquear a visibilidade.

Cabe-nos esperar e torcer para que os cavaletes marquem o início de uma retomada também em relação à continuidade física no térreo –ainda ocupado– aliada à continuidade visual da pinacoteca. Premissa reconhecível desde a emblemática fotografia de Lew Parrella, retrato de Lina Bo Bardi no Masp ainda em construção ao lado de protótipo do cavalete com "O Escolar" de Van Gogh: transparência do suporte ecoando a transparência do edifício com forte presença da cidade.

Eduardo Ortega-11.dez.2015/Divulgação
Cavaletes criados por Lina Bo Bardi voltam ao Masp
Cavaletes criados por Lina Bo Bardi voltam ao Masp

Atraída ao Masp pelos cavaletes, fui enredada por outra exposição: "Foto Cine Clube Bandeirante: do Arquivo à Rede", em cartaz até 20 de março no primeiro pavimento, com curadoria de Rosângela Rennó e expografia do Metro Arquitetura, sob coordenação de Martin Corullón. Essa mostra utiliza outro sistema expositivo de Lina Bo Bardi –esbeltos painéis, com levíssimos pontos de apoio no piso estabilizados por cabos de aço na horizontal. Ali, o uso dos painéis inova ao mesmo tempo em que preserva traços do original, e o modo de expor as obras estabelece um interessante diálogo com a lógica expositiva dos cavaletes de cristal.

A estratégia merece decifração: os painéis, pintados de branco, estão instalados nessa mostra sempre transversais em relação a sala e organizados a partir de um módulo central idêntico. A partir dele, dois outros painéis laterais, em dimensões diferentes, constituem variados intervalos em relação às paredes existentes. Ao invés de verticais, uma ligeira inclinação de seis graus configura "frente e verso" onde antes se reconheciam duas frontalidades. O painel do centro está sempre inclinado em direção ao ponto de vista da entrada da sala, enquanto os laterais são inclinados em direção ao fundo.

As 279 fotografias estão instaladas apenas nos painéis e no lado que se caracteriza de frente para o observador –isto é, com inclinação favorável a exibição. Ao contornar o primeiro conjunto descobrimos que o verso do painel se transforma no suporte para as obras exibindo-as pelas costas. O bastidor é reconhecido tão significativo quanto a imagem, pois cada fotografia guarda ali o histórico de suas viagens para exposições e salões por meio de selos, anotações e carimbos.

O rigor da montagem é admirável. As paredes existentes, pintadas em um rebaixado azul celeste, recebem cronologia à direita e trechos extraídos dos boletins publicados pela FCCB à esquerda; ao final da sala uma única grande vitrine apresenta os catálogos dos primeiros 31 salões e um elegante mapa de pontos das cidades onde esses salões ocorreram.

Essa montagem ecoa um dos aspectos mais impressionantes dos cavaletes: realizam duas narrativas opostas e complementares da obra e de seu bastidor. Mas, se os cavaletes objetivam autonomia de cada obra em relação ao conjunto antes do reconhecimento de seus dados, aqui o que importa é o conjunto e a confluência entre as imagens aliada à consciência de sua circulação registrada.

"Foto Cine Clube Bandeirante", com precisão e liberdade, inaugura uma verdadeira homenagem. Diante do encanto propiciado pela origem, apresenta outro encanto renovado. Configura uma natureza de resgate que permite compreender certos legados sem imobilizá-los no passado. Atravessa o tempo como uma lufada de ar fresco reinstaurando paisagens. Visitar essa mostra ao mesmo tempo em que os cavaletes estão instalados redimensiona a cultura no tempo. Importante presente da equipe do Masp que está permitindo, no conjunto de suas ações, acompanhar a retomada desse singular museu na história de São Paulo.

MARTA BOGÉA, 51, é arquiteta, professora do departamento de projeto da FAU-USP, e autora das expografias para Arte/Cidade III e 29ª Bienal de Arte de São Paulo.


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