Folha de S. Paulo


Todo escritor está condenado à eterna lição de casa

RESUMO A condição do escritor é frequentemente tema da literatura, do cinema e de outras formas narrativas. Uma leva de romances brasileiros do ano passado dá conta, de forma mais ou menos irônica, das expectativas que jovens autores têm do ofício e das angústias por ele impostas, tematizadas também em games recentes.

Existe uma curiosidade imensa em relação à vida dos escritores. Para se restringir apenas à seara de profissionais da escrita, roteiristas, jornalistas e tradutores não costumam ser alvo de igual interesse, embora seu cotidiano real não difira muito da rotina dos primeiros.

A sutil diferença talvez esteja no que os antigos gregos chamavam de "scholé", palavra que designava "a condição de um indivíduo que é dono de si, que tem livre disposição de si", segundo recorda Simon Leys –que aliás era o pseudônimo do escritor e sinólogo belga Pierre Ryckmans (1935-2014).

Dessa noção de liberdade deriva o sentido de descanso, ócio e, portanto, também o de algumas formas de ocupar o tal tempo livre –"estudo", "saber". O termo designa, ainda, o lugar dedicado ao estudo: "scholé" é a etimologia de "escola". Por onde se olhe, caracteriza bem o ofício literário, atividade cada vez menos vinculada ao sistema produtivo.

Afim com tal possibilidade, uma arguta definição da profissão foi dada por um escritor-personagem, o esculachado Hank Moody da série de TV "Californication": "Escrever é ser condenado a fazer lição de casa por toda a eternidade" –algo assim; a citação é de memória.

Há muito a televisão e o cinema idealizam a figura do escritor: o mais emblemático personagem de filmes de horror é um ficcionista com bloqueio criativo, Jack Torrance (Jack Nicholson). E que coisas terríveis um escritor que não consegue escrever pode fazer com seu machado.

O argumento de "O Iluminado", dirigido por Stanley Kubrick (1980), saiu da obra de Stephen King, autor geralmente esquecido quando na roda de bar alguém acusa de clicherescos ou metaliterários os romances protagonizados por escritores. Ao lado dos corriqueiros Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas, King está entre os exploradores mais regulares desse inquietante trabalho que não honra seu nome.

Quem não se recorda do pobre Paul Sheldon, protagonista (ou agonista) de "Angústia" (1987), aprisionado pela fã psicopata Annie Wilkes após acidente automobilístico (e cuja versão cinematográfica, "Louca Obsessão", dirigida por Rob Reiner em 1990, rendeu o Oscar de melhor atriz à mórbida Kathy Bates)?

A fã obriga Sheldon a ressuscitar a heroína Misery Chastain em um romance escrito sob sua "supervisão". Após ter ambos os pés quebrados por Annie, Sheldon mata sua fã número 1 e escapa; ao final da história, decide publicar o livro escrito no encarceramento.

Algumas lições depreendidas da obra de King: 1) quanto mais fatal o "deadline", maior sua eficácia; 2) escritores não merecem nenhuma confiança mesmo.

VIÉS EXISTENCIAL

No ano passado, uma leva de romances brasileiros explorou a vida de escritores de modo inusual, a ponto de Paulo Scott ter intitulado seu romance "O Ano em que Vivi de Literatura" (Foz) sob tutela desse viés existencial.

No livro, Graciliano recém-papou o prêmio literário mais polpudo do país, atraindo interesse –editorial, sexual– e expectativa para sua próxima publicação, que ele, presa da arapuca armada pelo sucesso, não consegue escrever.

A figura de linguagem aqui é a hipérbole: em Graciliano, a mistificação dos episódios supostamente típicos da vida de uma celebridade –as facilidades amorosas, as rivalidades e o embate boêmio levados às últimas consequências– são tingidos pelo ridículo da estilização romantizada de algo –oferta de royalties, volúpia inesgotável, fígado inoxidável– que, se acaso existir na forma hiperexagerada da narrativa, é para poucos autores em um país cujo índice de leitura é de 1,7 livro per capita ao ano.

Oferecendo quase um contraponto à arriscada estratégia de Scott para ironizar a romantização da vida literária, o catarinense Carlos Henrique Schroeder, protagonista do romance assinado por seu homônimo, "História da Chuva" (Record), emula sinceridade ao explorar a existência minúscula das cidades interioranas.

Escritor publicado de forma ainda independente, às vésperas de se casar, o personagem Schroeder alterna bicos como vendedor de eletrodomésticos, pequeno editor, promotor de eventos e professor de oficinas de escrita criativa no Sesc com a história de Arthur, afogado nas enchentes do vale do Itajaí em novembro de 2008, e seu grupo de teatro de bonecos. A idealização aqui se reflete na trajetória de Arthur, de início marginal e afinal consagrada no circuito restrito dos bonequeiros, espelhando ambições do protagonista.

Cheios de ambições também estão os escritores de "Brochadas" (Rocco), homônimo do autor mineiro Jacques Fux, e "Só Faltou o Título" (Record), do gaúcho Reginaldo Pujol Filho, narrado pelo furibundo Edmundo Dornelles, um pernóstico autor inédito que desfia ofensas aos rivais mais ilustres da literatura brasileira contemporânea, enquanto convive com o populacho e seus temas tão candentes quanto o último sucesso do grupo É o Tchan.

Em todos os citados, a ambientação realista com cenário reconhecível, que não exclui topônimos e outras referências, contribui para a quebra do distanciamento proposto pela mistificação mais usual, aquela que abriga escritores em torres de marfim.

No livro de Pujol, em especial, a menção a editores e autores brasileiros reais deixa a rancorosa vituperação bernhardiana do narrador mais patética e risível, assim como a obsessão enciclopedista do personagem Fux em torno do tema de seu livro traz o mito das altaneiras condições em que normalmente são retratados os escritores (em sentido contrário ao de Ziraldo, por exemplo, escritor-celebridade que afirmou nunca ter brochado).

Esses escritores trepam, telefonam, tomam drogas, trocam e-mails e mensagens pelo celular, fazem DR com ex, cometem crimes, fazem sanduíches, bebem e choramingam. Em comum com os detetives selvagens de Bolaño e com parte significativa dos usuários do Twitter e do Facebook que dispõem a palavra "escritor" sob o avatar, eles não escrevem.

Edmundo, de "Só Faltou o Título", se pergunta se as cópias que enviou de seu original "Demônio Contemporâneo" para as editoras que maldiz serão lidas. Se será publicado. Se vai ser compreendido pela "malta". Porém não escreve, apenas reclama. Há que considerar o que escreveriam esses escritores caso escrevessem –já que, como postulou Marguerite Duras, "escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos".

PREOCUPAÇÕES

O que fazem os escritores quando não escrevem e o que escreveriam os escritores se escrevessem não são preocupações restritas às formas narrativas clássicas, como literatura, cinema e quadrinhos. Nos últimos anos, a indústria de videogames também contribuiu para que a audiência sentisse na prática os dilemas da vida literária com os games "Alan Wake" (Microsoft, 2010) e "The Novelist" (Orthogonal, 2013).

No primeiro, um autor à la Stephen King investiga o sumiço da mulher durante uma viagem de férias, assolado por eventos saídos de seu livro mais recente (o qual não se lembra de ter escrito).

Tanto "Alan Wake" quanto "The Novelist" –no qual o jogador tem de decidir se o romancista Dan Kaplan deve conviver com a família ou se trancafiar para escrever, entre outras escolhas que podem mudar o rumo da narrativa– são devedores de "O Iluminado". Como no livro de King, as tramas dos games decolam a partir de viagens de isolamento destinadas a combater bloqueios criativos.

São, portanto, frutos do choque entre "scholé", o tempo livre para o ócio criativo, e a angústia da incapacidade, advinda da insegurança ou da culpa por abandonar sua existência "real" em nome da realização do abstrato.

Parte do "éthos" do ofício se encontra nesse dilema indevassável, também presente nos personagens das obras da literatura brasileira recente aqui mencionadas.

Em 1974, Georges Perec inventariou todos os alimentos sólidos e líquidos que engoliu ao longo do ano. Se somássemos a essa lista uma bibliografia do que o escritor leu no mesmo período, talvez obtivéssemos a única forma possível de retratar sem idealizações a vida de um autor.


Endereço da página: