Folha de S. Paulo


Sírios famintos ficam sem assistência em Madaya em meio a disputas

Nas colinas próximas da fronteira libanesa, a uma hora de carro do centro de Damasco, boa parte dos moradores de uma cidade síria estão passando fome, de acordo com residentes e trabalhadores de organizações internacionais de assistência.

A cidade, Madaya, está sob o controle dos rebeldes mas cercada por forças do governo, que barraram os acessos com arame farpado, campos minados e atiradores de elite. Os moradores da cidade estão se alimentando com sopas de grama, especiarias e folhas de oliveira. Comem jumentos e gatos. Procuram, semimortos, uma clínica que tem pouco mais a oferecer que não sais para restaurar sua hidratação. Vizinhos passam por vizinhos nas ruas sem reconhecê-los, porque os rostos de todos estão muito emaciados.

A Síria, no passado classificada como país de renda média, agora reporta periodicamente mortes causadas por desnutrição. Pelo menos 28 pessoas, entre as quais seis bebês, morreram de causas associadas à fome em uma clínica de Madaya que conta com assistência da Médicos Sem Fronteiras, disseram paramédicos que trabalham no local. E as 42 mil pessoas que as Nações Unidas registram como sitiadas em Madaya representam apenas 10% do total de pessoas sitiadas ou isoladas em áreas de difícil acesso no país, em meio a condições que se deterioram progressivamente.

Louai Beshara - 11.jan.16/AFP
Criança síria atravessa rodovia ao redor de Madaya enquanto comboio de ajuda espera para entrar na cidade
Criança síria atravessa rodovia ao redor de Madaya enquanto comboio de ajuda espera para entrar na cidade

O sofrimento delas representa um grave fracasso das potências internacionais, que vem se agravando apesar da intensificação de suas atividades militares e diplomáticas para resolver o conflito.

Isso está acontecendo enquanto as Nações Unidas planejam uma nova rodada de negociações de paz para o dia 25 de janeiro. Está acontecendo em meio à escalada das intervenções militares da Rússia e dos Estados Unidos no conflito. E, de certa maneira, de acordo com diplomatas e trabalhadores de organizações assistenciais, está acontecendo não só a despeito desses esforços mas por causa deles, já que as partes em conflito não hesitam em violar as leis internacionais em um momento no qual estão sendo cortejadas para participar de negociações.

Mas em Madaya e na vizinha Zabadani, cidades que no passado eram centros de turismo nas montanhas, qualquer pensamento sobre mudança política desapareceu, substituído pela fome. Hamoudi, 27, era aluno de uma escola de administração de empresas mas se tornou combatente depois que o governo sírio reprimiu violentamente os protestos de 2011, e disse que muitas pessoas prefeririam se render em troca de comida, ainda que estejam cientes das prisões e revanches que viriam a seguir.

"Na revolução, eu sonhava com democracia, liberdade", disse Hamoudi lentamente em uma entrevista via Skype, com uma voz que demonstrava claramente sua exaustão. "Hoje, sonho só com comida. Não quero morrer de fome."

Cinco pessoas morreram no domingo, entre as quais um menino de nove anos e quatro homens com mais de 45 anos, por suspeita de desnutrição, de acordo com paramédicos que trabalham com a Médicos Sem Fronteiras. A organização informou que dez pessoas necessitavam de hospitalização imediata para sobreviver, e que outras 200 chegariam a essa situação dentro de uma semana. "Madaya se tornou, para todos os efeitos, uma prisão a céu aberto", afirmou Brice de la Vingne, o diretor de operações da organização assistencial, em comunicado.

Cerca de 400 mil sírios estão presos por trás das linhas de combate, e desprovidos de acesso a alimentos e remédios. A contagem oficial das Nações Unidas vem subindo desde 2014, quando o total era de 240 mil pessoas e o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou por unanimidade uma resolução compulsória que ordenava às partes combatentes que permitissem entrega de suprimentos de assistência.

Tanto a Rússia, o mais poderoso aliado do governo sírio, quantos os Estados Unidos vêm executando ataques aéreos que, afirmam os dois países, têm por alvo os militantes do Estado Islâmico. Mas os ataques aéreos complicaram os esforços de assistência. Desde o final do ano passado, quando a Rússia interveio militarmente, pelo menos 16 centros de saúde foram atingidos e seis organizações assistenciais se retiraram da província de Idlib, onde o Estado Islâmico tem pouca presença mas as forças sírias e russas regularmente bombardeiam outros grupos de oposição ao presidente sírio Bashar Assad.

Enquanto tentam maximizar seus ganhos antes das negociações, todas as partes envolvidas estão infligindo novos sofrimentos aos civis.

Neste momento, ainda que o governo sírio esteja prometendo permitir a entrada de assistência das Nações Unidas em Madaya a partir da segunda-feira –diante da indignação internacional frente às informações sobre a fome–, forças governistas estão apertando o cerco a outra cidade sob controle rebelde, Moadhamiyeh, um subúrbio de Damasco.

"Rendam-se ou serão aniquilados", foi a mensagem que os moradores disseram ter sido apresentada a Moadhamiyeh pelos negociadores de Assad. A cidade sofreu um ataque com armas químicas em 2013 e um cerco de dois anos que terminou com um acordo favorável ao governo.

Usar a fome como arma viola as leis internacionais. Mas potências mundiais e regionais –como a Rússia, Estados Unidos, Irã e Arábia Saudita– não vêm se mostrando capazes de, ou dispostas a, pressionar seus aliados no campo de batalha. A ONU informa que apenas 10% de seus pedidos de autorização para a entrega de suprimentos de assistência a áreas sitiadas e de acesso difícil na Síria foram aprovados, no ano passado.

As resoluções do Conselho de Segurança "pouca diferença fizeram para os civis da Síria", disse Andy Baker, da organização assistencial Oxfam.

Isso coloca a ONU em posição desconfortável: ajudar a executar acordos locais de cessar-fogo pode permitir a entrada de suprimentos de assistência por algum tempo, mas isso também recompensa as táticas de cerco adotadas pelos comandantes.

A ONU se viu repetidamente apanhada por acordos que transformam o acesso a alimentos e remédios, que deveria ser incondicional, em moeda de troca. Alguns acordos requerem que os civis deixem suas casas se desejam obter assistência e proteção, o que viola os princípios básicos da assistência humanitária.

Embora a ONU enfatize que não é parte direta dos acordos, seus representantes se envolvem diretamente em sua execução –a entrega de suprimentos de assistência e a evacuação de civis não podem acontecer sem a ajuda deles. Em diversos casos, eles ajudaram a facilitar negociações, servindo como intermediários.

E com Staffan de Mistura, o enviado especial da ONU, pressionando por um cessar-fogo nacional, as tréguas locais são muitas vezes percebidas e retratadas como aprovadas pela ONU, e como passos na direção de um acordo mais amplo.

Muitos diplomatas e trabalhadores assistenciais –que solicitaram que seus nomes não fossem revelados para que possam continuar trabalhando na Síria– dizem que Assad explora a divisão entre os ramos político e humanitário da ONU. Os representantes políticos podem deplorar termos que envolvem rendição ou fome, mas quanto esse tipo de acordo é fechado, as agências humanitárias dificilmente teriam como se recusar a distribuir ajuda, especialmente se a alternativa for nenhuma assistência aos civis sitiados.

Os críticos dizem que a ONU, ansiosa por manter o envolvimento do governo sírio nas negociações de paz com grupos oposicionistas, está ou se vendendo ou sendo explorada.

"O regime continuará a usar sua campanha de submissão ou fome, porque ela está funcionando", afirmou Bissan Fakih, da Syria Campaign, uma organização que pressiona pela imposição de uma zona de restrição de voo sobre a Síria, no Facebook, "e com um grande e sorridente selo da aprovação conferido pela ONU" e pelas potências mundiais.

Autoridades como Mistura, que visitou Damasco no final de semana, deveriam estar pressionando ruidosa e publicamente por acesso incondicional para entrega de suprimentos de assistência, disse Bassam Barabandi, antigo diplomata sírio. Em lugar disso, ele afirma, estão dizendo sigilosamente aos grupos de oposição que não desejam que as autoridades do governo sírio "se irritem, e estraguem o processo político".

(Mistura, em visita ao Irã, afirmou em comunicado no domingo que a Arábia Saudita e o Irã assumiram o compromisso de participar das negociações em Genebra a despeito de seu confronto em um tenso impasse causado pela execução de um clérigo xiita pelos sauditas, este mês.)

Cercos não são novidade na Síria. Cerca de metade dos 400 mil sírios que a ONU conta como sitiados estão cercados por forças do governo, que empregam essa tática sistemicamente em torno de Damasco e Homs. O grupo mais numeroso está cercado pelo Estado Islâmico, que tem 200 mil pessoas sob bloqueio em Deir al-Zour, no leste do país. Outros insurgentes, entre os quais principalmente o grupo islâmico Ahrar al-Sham, também têm mais de 12 mil pessoas cercadas em cidades pró-governo isoladas no norte da Síria, como Foua e Kfarya.

Mas as coisas deveriam ter mudado em Madaya. A cidade era parte de um acordo elogiado no mês passado como o mais complexo cessar-fogo local negociado até o momento, envolvendo Foua e Kfarya, de um lado, e Madaya e a vizinha Zabadani, do outro.

Combatentes feridos e suas famílias foram evacuados simultaneamente, dos dois lados, e planos foram preparados para aumentar a assistência e o número de pessoas evacuadas. Mas os planos não avançaram e pessoas continuam a adoecer e morrer em Madaya –alvo de um dos cercos mais apertados da guerra, o que inclui, de acordo com relatórios que a ONU define como "críveis", casos de pessoas sendo abatidas a tiros ao tentar deixar a área sitiada.

Os civis também estão sofrendo nas cidades cercadas pelos rebeldes no norte, ainda que helicópteros do governo ocasionalmente transportem suprimentos a elas.

As negociações são complexas e delicadas, e envolvem discussões entre o Irã e grupos rebeldes porque Zabadani e Madaya estão cercadas principalmente pelo Hizbollah, milícia libanesa apoiada pelo Irã e aliada de Assad. Há divisões dentro das cidades, igualmente, com algumas pessoas acusando os combatentes de monopolizar os estoques de comida e muita gente debatendo que termos de rendição aceitar.

Enquanto isso, dezenas de pessoas procuram a clínica afiliada à Médicos Sem Fronteiras a cada dia, disse Khaled Mohammad, enfermeiro anestesista que mostrou fotos de Suleiman Fares, 63, um homem esquelético que foi encontrado morto por ativistas que estavam levando comida à sua casa.

As imagens ajudaram a galvanizar o alarme quanto à situação dos sitiados. Algumas das fotos que estão circulando são de outros locais, na Síria e outros países. Mas as imagens mostradas por Mohammad são novas e correspondem aos relatos de outras testemunhas.

A enfermeira Samar Hussein foi uma das dezenas de moradores entrevistados. Ela disse ter gasto US$ 40, no mês passado, por algumas colheres de açúcar para sua filha de 19 anos, que havia desmaiado, e para o bebê que sua filha estava tentando amamentar. Ela e diversas outras famílias dividiram recentemente uma sopa feita com uma xícara de triguilho, que cozinharam juntas porque não há muita lenha. Na rua, ela disse ter visto uma mulher recolhendo grama para comer, e que inicialmente nem percebeu que se tratava de sua vizinha.

"Ela parecia tão diferente", disse Hussein. "Tão magra".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: