Folha de S. Paulo


Notas sobre a pintura de Paulo Pasta

RESUMO A pintura recente do artista é analisada aqui no âmbito mais amplo de sua obra, a partir da presença repetida do motivo arquitetônico. Crítico repassa como a pincelada, a estrutura e a cor variaram ao longo do tempo, chegando a compor uma arquitetura da paisagem, nos quadros recentemente expostos em São Paulo.

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Óleo sobre papel, sem título (2015), de Paulo Pasta
Óleo sobre papel, sem título (2015), de Paulo Pasta

Paisagens também são construções. O quadrante do Estado de São Paulo definido desde a capital para o oeste e, num giro em sentido horário, para o norte, cobre boa parte de suas terras de boa qualidade. São terras, em geral, planas e manejáveis o bastante para o plantio de diversas culturas. Onde havia a natureza selvagem surge outra, cuidadosamente construída ao longo de gerações. A mata atlântica que a constituía atualmente só mostra aqui e ali manchas de mato ainda intocado.

Com o avanço das monoculturas e dos agronegócios iniciado nos anos 30 do século passado, nos anos 80 completa-se finalmente um ciclo em que boas estradas asfaltadas entre grandes cidades, e também as vicinais entre cidades próximas, reproduzem numa escala maior as estradas de terra das fazendas e, entre suas plantações, os carreadores que dão acesso às diversas culturas, em especial, e por vastas áreas, a da cana-de-açúcar.

Esse espaço que se avista da estrada, e do qual a estrada também é parte, espaço meticulosamente construído, foi o motivo escolhido por Paulo Pasta para as suas paisagens recentes. Espaço de sua infância e juventude, décadas depois o pintor o revisita. E com uma quase missão: mostrar pela pintura uma paisagem ainda a ser vista.

Não é preciso conhecer essa região do Estado para atestar o quanto Paulo Pasta a interpreta bem. E aqui toco num ponto, creio, dos mais importantes de sua pintura desde, pelo menos, 1987: o primado do motivo.

Há uma atenção, na sua pintura, em não comunicar nem mais nem menos do que o motivo exige. Sua pintura é exuberante mas também serena. Como Braque, Paulo Pasta gosta da emoção corrigida pela regra. E basta, para comprová-lo, olhar suas magníficas pinturas com motivos arquitetônicos básicos com arcos, colunas, pilastras e lajes, que se encontram e se desencontram, formam cruzes e as desformam, para avaliar o quanto o motivo arquitetônico conduz sua pintura e a eleva.

A atenção do pintor com o motivo é tal que, nas paisagens recentes, as mais intensas da parte nitidamente figurativa de sua obra, uma paisagem com um vasto espaço à mostra é pintada em dimensões que dão uma área aproximadamente dez vezes maior do que um trecho desse mesmo motivo pintado bem mais de perto. Observação que pode soar absurda, pois, afinal, não é o tamanho do quadro que define a "quantidade de mundo" que mostra.

Pasta, entretanto, escolheu se mover nesse difícil intervalo entre o espaço de uma pintura ainda algo tradicional, moderna, em que vemos uma profundidade indefinida, mesmo se bem rente, mas além da tela, e o espaço de uma pintura contemporânea, na qual as dimensões da tela são parte desse espaço.

As nuvens podem aqui nos conduzir. Nas paisagens de grandes dimensões, por mais dramáticas que surjam, são nuvens que economizam pinceladas. Já nas paisagens de dimensões menores, as nuvens se rebuscam de tal modo que se percebe algo assemelhado aos estudos de nuvens de Constable. O céu e as nuvens estão mais perto se diminuímos nosso ângulo de visão em relação ao horizonte. E estão mais longe se alargamos o ângulo. E é nessa toada que os quadros são pintados.

HORIZONTE

Mas, como nem só de céu vive uma paisagem, também a terra e o horizonte do encontro de ambos são pintados de modos diversos conforme o motivo.

As passagens entre diferentes solos se acumulam em camadas, nos quadros grandes, pintadas de modo mais liso, enquanto nas de motivos menores são mais irregulares. E, quando a paisagem não é a do campo lavrado, mas trechos de ruas de cidades pequenas, os muros interrompem a vista e o pintor diminui assim as dimensões. Não aumenta o que é singelo, embora, um tanto como um Goeldi à luz do dia, desolador. E, do mesmo modo, a noite pintada, com direito a lua cheia, é pequena, pois a noite confina os espaços.

Essa desolação das casas perto da estrada de pequenas cidades de interior, seus muros, seu isolamento, não é diversa da solidão que os vastos espaços dos canaviais transmitem. E, mesmo que os observemos desde a estrada, num dia de sol abrasador, ou na tempestade que no horizonte se anuncia e escurece céu e terra, mesmo assim é espaço demais para gente de menos. Essas solidões que Hopper pintou das paisagens americanas também já lavradas e construídas são as antecessoras mais condizentes que encontro das pinturas do interior de uma região por Paulo Pasta. Embora em Paulo Pasta a figura humana esteja ausente. Como se fosse a própria paisagem a solidão que carrega.

Sinal, talvez, de que monoculturas tão vastas não são obras da natureza, não são pastagens naturais, mas a substituição de algo que já não existe. Não há assim nada de bucólico ou pitoresco nessas paisagens. Nem são propriamente belas. São mais da ordem do sublime, que apraz tanto quanto dói.

Não são, creio, sentimentos assemelhados os que nos transmitem os pastéis de 1984 de Paulo Pasta que se detêm nos mesmos motivos. Talvez retrospectivamente lá se insinuem, mas não com a potência das paisagens de três décadas depois, vinda das pinturas de motivos arquitetônicos que, por três vezes, o pintor encontrou, dos quais se desviou, se perdeu, com os quais se reencontrou.

Nada de novo há nisso. O título que Paulo Pasta deu a seus escritos sobre pintura chama-se mesmo "A Educação pela Pintura". E ninguém se educa, não para ser culto, mas comunicar algo, indo direto a um alvo antevisto.

O motivo arquitetônico, pelo menos até hoje, em 2015, como que chamou Paulo Pasta por três vezes: em 1987, em 1994 e em 2004. Seria longo descrever esses momentos, suas durações, intervalos e até mesmo suas superposições. Que aqui fiquem em notas rápidas.

O primeiro deles, o mais breve, vai de 1987 a 1989. O pintor encontra no motivo de ogivas algo góticas um modo de riscar, rabiscar e rasurar a tinta grossa da superfície de suas pinturas de então. Os arcos emergem como se de um passado imemorial, embora um tanto lírico, uma vez que o esforço que escava a tinta tem sinais semelhantes ao de coisas gastas, usadas e benquistas.

Por que para? A espessura da tinta depois rasurada parece pôr um limite a essas pinturas. Nas pinturas de 1990 a 1993, os motivos mais predominantes deixam de ser arquitetônicos e são padrões assemelhados a cacos rejuntados de um mosaico de chão. Sua pintura perde espessura, talvez o que almejasse. As camadas são mais finas, e os cacos se deixam entrever pela pele da pintura. Em algumas, eles como que se juntam verticalmente. Ressurgem, assim, as ogivas, mas apenas por suas colunas que apoiariam as ogivas de 1987-89.

Conquistada uma fatura mais leve, retornado o motivo, embora modificado, entre 1994 e 1999, Pasta desbasta sua pintura ao máximo. A cor se torna translúcida, como uma pele pregada e esticada sobre a tela. Seus quadros abandonam de vez o monocromatismo anterior. O motivo então pede mais. Colunas são solitárias. Não preenchem a tela inteira. A pintura e seus problemas chegam todos ao mesmo tempo, como nos termos de Matisse: como conjugar linhas, formas e cores?

O motivo, a atenção detida nele, quase diária, sugere as respostas. As colunas se interrompem no alto do quadro. Essa invenção Pasta não abandonará mais, mesmo na fase seguinte de motivos arquitetônicos, a de 2004 a 2015. Esse alto, de outra cor ou tom diferente do das colunas, ao lado dessas, também com cores ou tons diferentes, forma um diagrama básico. Com exceção do capitel das colunas, o diagrama segue sempre linhas verticais e horizontais e do mesmo modo em 2004-2015 (com exceção de uma pequena diagonal no alto de alguns desses quadros).

Mas é pela cor que esses diagramas ganham vida. A cor de Pasta transluz. Uma área de cor, seja uma coluna, seja a área entre elas, seja o alto do quadro, tem sempre tons mais claros na fina massa de sua fatura. Metáforas umas das outras, pois semelhantes, as colunas também se dispõem lado a lado, metonimicamente. Esse jogo espacial e poético de lugares é seguido pelas cores, desejosas de luz, que se comprimem e se expandem por valores ou cores próximas.

Sem abusar dos contrastes de cor, mas tensionando ao máximo os tons da mesma cor, usando duas ou três cores, a pintura, mais óptica abaixo do quadro, ainda num espaço mais moderno que atual, sobe pelas colunas, quase que delas transborda e se interrompe no alto, onde a cor coincide com a opacidade do quadro, num espaço agora contemporâneo.

Atenção ao motivo, a suas potencialidades, não exagerar, não comedir, deixar a pintura ser óptica em certas regiões e opacas em outras, juntar como que impossíveis, o olhar jogado para o alto, elevado: grandeza dada ao olhar que desce e de novo ascende.

Essas pinturas de 1994 a 1999 prosseguem praticamente até hoje. Suas variações subsequentes, porém, não me parecem tão magníficas. O espaço entre as colunas ganha a fisionomia de garrafas ou lápis. Numa variação mais livre, mas também aludindo ao arredondado dos capitéis das colunas, toma a forma de peões. São pinturas intensas, como tudo em Paulo Pasta há 20 anos. Mas, talvez por me ater demais ao que julgo o pintor também se atém –o motivo– falta nelas essa elevação que se dá tanto ao olhar quanto ao espírito.

Entre 2003 e 2005, Pasta olha de novo para o chão. Padrões retangulares ressurgem. Aparecem linhas paralelas desenhando faixas delgadas, que, de novo, se erguem arquitetonicamente. Somem as colunas. Basta uma pilastra para erguer a pintura e uma viga para interrompê-la. Surge uma grande variação de diagramas com a abolição do capitel da coluna, pois seu lugar, agora ausente, pode ser ocupado apenas por linhas.

O motivo arquitetônico não desaparece e, para cada diagrama, há uma grande variação tonal e colorista. Um resquício de suntuosidade das colunas desaparece. A grandeza agora é alegre, ou discreta, ou imponente, ou simples, ou complexa, está em toda parte. Está agora, várias décadas depois, nas paisagens natais de Paulo Pasta.

Os diagramas de faixas horizontais e verticais, mas sempre com uma direção acentuada para o alto, que também desenham grandes áreas de cor, que promovem um jogo de dispersão e síntese das áreas ao mesmo tempo, que podem ser vistos como figura ou fundo, que podem ir de tons quase brancos aos mais escuros, numa variação enorme de possibilidades, fazem dessa série de pinturas de Paulo Pasta desde 2004 uma das mais potentes e luminosas da história da pintura brasileira.

Que sua pintura se volte nesse tempo para paisagens tem numa espécie de interpretação arquitetônica da paisagem sua razão de ser.

Nas pinturas de pilastras e lajes, que lembram fundos de pinturas do renascimento italiano, Duccio, Piero e outros, um espaço mais óptico abaixo se transmuta num opaco acima, numa sustentação pelo alto. Nas paisagens, a profundidade óptica nos arrasta desde a linha de chão para o horizonte.

O horizonte, porém, retroage para o espaço maciço das nuvens como que sobre nossas cabeças. Nem o chão nem o horizonte, o que responde pela construção da pintura, de paisagens ou de motivos arquitetônicos está no alto, no alto firma-se. Firmamento poético, com alusões religiosas em algumas pinturas, como as que se organizam por cruzes, dele nos dá o quanto a grandeza da arte pode dele nos comunicar.

ALBERTO TASSINARI, 62, é doutor em filosofia pela USP e crítico de arte. É autor, entre outros, de "O Espaço Moderno" (Cosac Naify).


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