Folha de S. Paulo


São Paulo, 2015

Túmulos possíveis

"Se não fosse eu, essa página do Brasil não teria sido aberta." Assim se apresentou seu Toninho quando o procuramos em seu bar, defronte ao cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte de São Paulo. Era o primeiro dia em que saíamos a campo para preparar as filmagens do documentário "O Oco da Fala" para a Clínica do Testemunho do Instituto Sedes Sapientiae.

As Clínicas do Testemunho, que hoje existem em várias cidades do Brasil, foram criadas no programa de reparação psíquica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Para chegar ao "oco da fala", a fala que não dá conta do terror de Estado. Chegar ao que nem sequer encontrou um nome.

Seu Toninho, pai dos indigentes de Perus, vai nos contando sua história: "Dizer que eu sofria a dor que eles sofreram, não. Cada um tem sua própria dor. Mas, vendo aquele choro, aquela procura incansável...". Sua voz embarga.

Reinaldo Pinheiro/Divulgação
Seu Toninho no seu bar em frente ao cemitério de Perus, em São Paulo
Seu Toninho no seu bar em frente ao cemitério de Perus, em São Paulo

Antônio Pires Eustáquio foi parar no cemitério Dom Bosco em 1976, vindo do sul de Minas e depois de ter feito vários cursos para ser administrador de cemitério.

Quando chegou lá começou a estudar os registros e viu que havia exumações sem localização dos ossos. Ninguém queria falar nada sobre isso. Foi numa pescaria com um colega que ficou sabendo da existência de uma vala: "Eram todos terroristas". "Eu, que lia muito 'O Pasquim', fiquei quieto", relata.

Era 1990. Com uma sonda, descobriu a vala onde foram jogados os ossos depois que foi frustrada a malévola intenção de instalar um forno crematório que apagaria os indícios de tamanha violência. Passou a ter certeza de que, entre os indigentes, estariam os ditos "terroristas". Passou a atender familiares de desaparecidos e a localizar os registros a partir dos codinomes. Várias vezes foi ameaçado, mas "ninguém morre na véspera".

Toninho diz que numa tarde reconheceu o jornalista da TV Globo Caco Barcellos no cemitério. Sabia da importância de Caco e contou a ele sobre a vala. A partir daí, a prefeita na época, Luiza Erundina, criou a Comissão Especial da Investigação das Ossadas de Perus.

Em 1992, Toninho deu como cumprida sua missão: construiu o bar e a floricultura onde o encontramos, tendo como meta poder pagar a educação de seus filhos.

A vala foi aberta, e as ossadas foram cuidadosamente transportadas para a Unicamp, onde, depois de um trabalho inicial, ficaram abandonadas por dez anos. Hoje uma equipe de peritos forenses cuida amorosamente das ossadas. Mas já se passaram 25 anos.

Meses depois, voltamos para fazer a pré-produção da filmagem. Era um dia chuvoso. É de praxe parar no bar em frente e dar um dedo de prosa com Toninho. Depois, fomos caminhando pelo cemitério.

Vou andando, pisando no gramado que ladeia o monumento que marca o lugar da vala comum, vou buscando também vestígios dos corpos e das ossadas. Rente ao monumento, alguém depositou plantas com florzinhas brancas.

De repente vejo um senhor dirigir-se até o monumento. Tem barba. Vai andando até o lugar da vala. Fico observando de longe, respeitosamente. Penso na delicadeza de estar naquele lugar, na delicadeza de fazer aquele documentário. Poderia ter falado com essa pessoa e ter conseguido mais um material para o filme. Escolhi não falar e respeitar o momento.

Fico observando, pois minha presença parece não contar. Havia apenas o caminhar movido pela dor e pela saudade. Não existia nada em volta. Fico olhando de longe. Aquele senhor para diante do muro com a frase assinada por Luiza Erundina e, de repente, ergue os braços e, em comunhão com o sagrado, reza ou fala algo.

As palmas da mão voltadas para o muro, em contato com a sua história. Aquilo dura alguns segundos. Eu choro. Depois ele se retira com o mesmo andar resoluto e sem olhar para os lados.

Aquele era o túmulo possível para seu pai? Um irmão? Um amigo? Como é difícil não se despedir de quem amamos. Minha gratidão pelo seu Toninho aumenta. Ele sabe da dor de quem não consegue saber do paradeiro de seus familiares. Ele ajudou a construir esse túmulo possível.

MIRIAM CHNAIDERMAN, 65, psicanalista, documentarista e ensaísta, dirigiu o documentário "De Gravata e Unha Vermelha" (2015).


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