Folha de S. Paulo


Antes e depois - uma entrevista com Augusto de Campos

RESUMO Poeta, tradutor e ensaísta, Augusto de Campos, 84, relança livro de ensaios de 1978, agora acrescido de novos textos e referências. Um dos mentores da poesia concreta na década de 1950, ele comenta as perspectivas da poesia experimental em tempos de recursos digitais e afirma vislumbrar um futuro promissor.

Charles Sholl - 9.nov.15/Futura Press/Folhapress
Augusto de Campos em cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural no Palácio do Planalto
Augusto de Campos em cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural no Palácio do Planalto

O homem cria regras para evitar o caos. Acredita assim que o mundo está sob seu domínio. Nas artes, o rigor é, portanto, uma bússola para tantos, mas coisa irrelevante ao homem que deseja experimentar. Tais são os vanguardistas. Tal é Augusto de Campos.

Nascido em 1931, o paulistano publicou seu primeiro livro aos 20 anos. "O Rei Menos o Reino" é um poema longo, dividido em cinco partes; fazem parte da obra outros dez poemas autônomos. Na estreia, Augusto mostrava sua disposição para implodir o rigor: a terceira parte do poema é um soneto em decassílabos sem rimas.

No ano seguinte, com o irmão, Haroldo de Campos, e Décio Pignatari, lançou "Noigandres", publicação do coletivo homônimo que viria a ser o berço da poesia concreta –da segunda edição da revista, em 1955, constava sua série "Poetamenos", com poemas em cores, conjunto tido como o primeiro exemplar consistente do movimento vanguardista.

Os alicerces do movimento de ruptura foram estabelecidos na quarta edição de "Noigandres", em 1958. O manifesto chamado "Plano-piloto para Poesia Concreta" apresenta a estética do movimento: trata-se do "produto de uma evolução crítica de formas".

"Dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural."

Estão ali, ainda, os precursores eleitos pelos irmãos Campos e Décio Pignatari: Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, Oswald de Andrade, dadaístas, modernistas.

Duas décadas depois do manifesto, Augusto de Campos lançou "Poesia Antipoesia Antropofagia", coletânea de estudos sobre nomes que, de alguma forma, dialogam com o concretismo na poesia. Tais "incursões errático-críticas" (nas palavras do poeta) propõem uma leitura, por exemplo, da relação entre "Finnegans Wake", de James Joyce, e "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa –obras que se resolvem não só "através da" linguagem mas "na" linguagem de esmero léxico notório.

Neste ano, depois de décadas fora de catálogo, Augusto de Campos relança a obra, com um adendo no título –"Poesia Antipoesia Antropofagia & Cia" [Companhia das Letras, 328 págs., R$ 44,90].

O adendo corresponde a estudos escritos de 1978 para cá, que abordam a obra de Ernani Rosas, Sousândrade, Cyro Pimentel e de outros "rebeldes que o filtro do tempo vai resgatando ou já resgatou depois de flagelá-los com o olvido ou com a indiferença com que a recepção acadêmica costuma contemplá-los". Leia a seguir entrevista com o poeta, que só concordou em dar respostas por escrito.

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Folha - Além do acréscimo de estudo de "obras de ruptura", houve neste volume uma revisão de conceitos e conteúdo? Ou os mesmos apontamentos da edição de 1978 permanecem?
Augusto de Campos - Não há nada que rever nos conceitos do livro. O que cabe é acrescentar e expandir, e, no livro –o dobro da primeira edição– há muitos acréscimos e expansões. Por que haveria eu de reformar as minhas ideias, tendo trabalhado quase 70 anos no estudo das "obras de ruptura" e abordado as mais diferentes formas de sua prática?

Por que retomar agora uma obra de quase 35 anos atrás?
Não se medem obras pela data. A primeira edição traz, entre outros, estudos pioneiros sobre Gregório de Matos, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral, Mário Faustino, ainda hoje figuras da mais alta relevância, tratando-se de livro esgotado há muitos anos e, portanto, de difícil acesso. A segunda parte ("... & Cia") tem mais páginas que a primeira, e contém estudos que vão de Sousândrade às poéticas das novas tecnologias. Não é uma obra de 35 anos atrás. É uma obra de ontem e de agora. "News that stays news." Notícia que permanece notícia. Novidade que permanece novidade.

Acredito que retomar o trabalho de mais de três décadas inspira um certo saudosismo, certo?
Saudosismo nenhum. Venho de receber em outubro o Prêmio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda, e recebi também, no mês passado, a Ordem do Mérito Cultural, evento do qual fui o homenageado. Foram premiações insólitas, o "Neruda", pela primeira vez outorgado a um brasileiro, e poeta experimental, completou-se com uma videoexposição de meus poemas. O segundo prêmio foi entregue num evento inédito no Planalto, com projeções de videopoemas em grandes dimensões e Hino Nacional executado em guitarra elétrica. Meu discurso foi também insólito.

Não me ative à literatura e quebrei o protocolo, criticando os "impeachmaníacos", inimigos da democracia. Só falta pedirem o "impeachment" das estrelas, para melhor tomarem o poder, nas trevas do obscurantismo e do caos... Publiquei, na mesma época, um novo livro de poemas –"Outro"– com minhas produções mais recentes. Participo, ainda, com leituras de textos, do novo CD de Cid Campos, "O Inferno de Wall Street/Profetas em Movimento", música para dança contemporânea, há pouco lançado. Minhas novas traduções de Maiakóvski podem ser lidas na internet. E sairá no ano vem uma nova edição de "Emily Dickinson: Não Sou Ninguém" com o dobro das traduções da primeira.

Tenho outros livros em preparo para o próximo ano, entre os quais "Música de Invenção 2". Como falar em saudosismo? O "concretismo" é hoje reconhecido em todo o mundo, e continua a inspirar novos autores e obras. Direi apenas que, embora mais conhecida pela sua fase ortodoxa, caracterizada pelo minimalismo verbal, a poética experimental que encetamos teve diferentes inflexões ao longo de seus 60 anos de vida, e se projeta em muitas formas nas várias mídias, a impressa inclusive, com um futuro extremamente promissor no âmbito da tecnologia digital, cuja linguagem é tanto verbal quanto imagética e auditiva. Antecipamos isso, em termos de linguagem poética, a partir dos anos 1950, com a ideia de uma poesia "verbivocovisual", hoje em pleno desenvolvimento. Tenho saudades do futuro.

"Outro" reúne poemas em composições visuais elaboradas com recursos das mídias eletrônicas. E "...& Cia" termina com uma pensata sobre o impacto das novas tecnologias na poesia. A vanguarda de hoje passa necessariamente pelo digital? O analógico está morto?
Nada está morto. O livro vive. "Outro" é analógico e é digital. O mundo digital oferece, no entanto, novos e inspiradores instrumentos para a criação poética, livro inclusive, e eu diria que aqueles que assimilam a linguagem digital, que combina o verbal ao não-verbal ou icônico, hão de encontrar nesse ambiente muita motivação para levar a poesia a caminhos que serão sempre imprevisíveis mas não serão nunca o caminho do meio.

Aliás, como observa a produção contemporânea de poesia? É possível assegurar, por meio dela, que a antropofagia foi plenamente assimilada?
A Antropofagia, entendida em termos oswaldianos, tem o significado de uma assimilação cultural seguida de uma reelaboração criativa, como os poetas concretos a interpretaram. Não a vejo neste momento inteiramente realizada entre nós, quer no campo da poesia quer em outro qualquer domínio cultural, apesar de alguns sucessos e progressos. Há muito retrocesso no ar. Vem-me à cabeça a tirada de Décio Pignatari, que em seus últimos tempos dizia que a Antropofagia tinha virado "carne de vaca". Até os "chato-netos" se tornaram "antropófagos" e "tropicalistas", tendo o cuidado de pular os poetas concretos, que foram os que ressuscitaram Oswald e defenderam a Tropicália quando estes eram renegados pelas universidades e relegados pela imprensa...

Quais são os poetas que o sr. tem lido ultimamente?
Os de sempre, de Mallarmé a Cage. Mas com uma abertura muito grande para outras linguagens e estilos, como se pode verificar em meu livro "Poesia da Recusa", que vai do barroco alemão Quirinus Kuhlmann ao bardo moderno, o galês Dylan Thomas, assim como em minhas traduções de Rainer Maria Rilke, "Coisas e Anjos de Rilke".

RODOLFO VIANA, 34, é jornalista da Folha.


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