Folha de S. Paulo


ponto crítico

Descompasso de visão em montagem de peça de Shakespeare

Em uma Viena medieval libertina, o Duque, homem de brandos costumes, indica um puritano para governar, esperançoso que este restaure a ordem. Ângelo, o substituto, reativa leis para combater a amoralidade. Fecha prostíbulos e prende quem pratica sexo fora do casamento. Mas o novo administrador não só exagera na dose ao condenar o jovem Claudio à morte por ter engravidado a noiva. Revela também sua hipocrisia ao coagir Isabella, irmã desse e futura freira, que o procura pedindo clemência.

Os favores sexuais exigidos são impedidos pelo Duque, que observa o andamento de seus planos disfarçado de padre. Finalmente, o regente revigora seu poder ao impor três casamentos: um para punir Ângelo, outro para calar possíveis críticos e um para garantir sua sucessão.

Lenise Pinheiro - 4.nov.15/Folhapress
Os atores Marco Antônio Pâmio (esq.), Luísa Thiré e Marcos Suchara (fundo) em
Os atores Marco Antônio Pâmio (esq.), Luísa Thiré e Marcos Suchara (fundo) em "Medida por Medida"

A comédia "Medida por Medida", no Sesc Vila Mariana até 31/1, cheia de guinadas aparelhadas pelo Duque, foi até agora pouco encenada no Brasil. Na Europa, porém, essa obra shakespeariana tem sido relevante desde a segunda metade do século 20.

Foi usada para leituras feministas, defendendo a autonomia da mulher sobre seu corpo, ou em encenações que denunciam o autoritarismo do Duque, evidente no final irônico dos matrimônios. Escrutinando a relação entre legislação e sexualidade, ela permite discutir a política sexual no teatro. Basta pensar nas mais recentes polêmicas sobre a lei do aborto ou o casamento gay para vislumbrar a atualidade da peça.

A encenação de Ron Daniels trilha outro caminho. Conforme uma leitura mais clássica, realça a dimensão humana dos personagens. Ângelo (Thiago Lacerda) é um burocrata reprimido que se encanta com o fervor religioso de Isabella (Luisa Thiré). Desde logo fica perturbado com a tentação, até sucumbir ao remorso.

A noviça, por sua vez, é uma alma nobre sem fanatismo religioso que se apaixona pelo Duque (Marco Antônio Pâmio), homem bom, preocupado com o bem-estar de todos. Os atores constroem com clareza e afinco os personagens, evitando qualquer julgamento de valor acerca de seus atos, nem mesmo os do agressor.

Mas há decisões que tornam tal leitura conservadora e incômoda. O retrato da classe baixa e dos gêneros, sobretudo.

O diretor trouxe a Viena medieval para a contemporaneidade brasileira. Mas os populares –a cafetina Madame Bem-Passada (Giulia Gam), o cafetão Pompeu (Lourival Prudêncio), o brincalhão Lúcio (Marcos Suchara), o encarcerado Barnabé e o policial Cotovelo (Felipe Martins)– embora divertidos, são caricatos.

O figurino berrante de Bia Salgado ainda realça o quanto essas figuras folclóricas do imaginário brasileiro são irrisórias. Duque, Ângelo e Isabella, por outro lado, vestem ternos ou hábitos sóbrios e nunca perdem sua nobreza por completo. Conforme lugares-comuns de gênero, somente Claudio (Rafael Losso) ganha densidade maior em seu medo de morte, enquanto sua noiva Francisca (Ana Kutner) é uma grávida histérica.

Assim, a encenação, que começa com foliões dançando e termina em samba, emprega a cultura popular de forma pitoresca, eliminando sua verve transgressora. Homens e mulheres agem dentro de parâmetros antiquados de gênero. Ao evitar também qualquer ironia em relação ao Duque e seu maquiavelismo, assistimos acríticos a suas manobras para reinstaurar seu governo por meio de núpcias forçadas.

Quando Isabella aceita a mão do Duque, a noviça solta o cabelo. Supostamente é um gesto libertador com o qual ela reconstitui sua feminilidade. As jovens mulheres que estão protestando contra o PL 5.069 certamente não se reconhecerão nesta submissão ao mando masculino, que implica abdicar do próprio desejo. Também duvido que neste momento alguém queira aplaudir um líder feudalista que faz artimanhas para o "bem do povo".

Embora seja uma montagem sólida e com boa direção de atores, é difícil concordar com sua concepção politica, de gênero e de classe.

CAROLIN OVERHOFF FERREIRA, 46, professora de cinema e história da arte da Unifesp, é autora de "Cinema Português - Aproximações à sua História e Indisciplinaridade" (Alameda).


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