Folha de S. Paulo


Sem tempo para olhar a morte

Natal, 1983

Em Natal, até o final dos anos 1970, quando uma discussão, qualquer que fosse ela, não chegava a uma conclusão, alguém sempre sugeria: "Vamos perguntar ao mestre Cascudo".

Cascudinho, como Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) era chamado pelos amigos, sempre sabia a resposta. Afinal, embora tenha se tornado conhecido no Brasil como a referência em folclore, ele era também historiador, jornalista, etnógrafo, etnólogo, antropólogo, escritor, professor de direito internacional e de música, autor de mais de 160 livros. Viajara o mundo inteiro e sentara tanto em solenes cadeiras de universidades europeias quanto no chão de terra batida de aldeias africanas.

Em fevereiro de 1983, eu era correspondente de "O Estado de S. Paulo" em Natal, e o jornal me pediu uma entrevista com Cascudo. Aquela não era a primeira vez que eu faria uma matéria com o mestre, mas seria a última.

Acervo pessoal
Osair Vasconcelos e Câmara Cascudo em dezembro de 1978
Osair Vasconcelos e Câmara Cascudo em dezembro de 1978

Conhecia Cascudo desde a adolescência quando, com um grupo de amigos do Colégio Atheneu, fora visitá-lo. Desde então ele sempre me chamava de "cangaceiro". E chamava de forma tão dirigida que, por muito tempo, achei que ele só dava aquele tratamento a mim. Depois, descobri que ele tratava assim quase todo mundo.

Para entrevistar novamente o mestre, tive de negociar com a família, através de Ana Maria Cascudo, sua filha, durante uma semana. Cascudo já apresentava problemas de saúde, e os seus familiares o cercavam de cuidados. O sinal verde foi com algumas regras: levar poucas perguntas e por escrito, em letras grandes; não fotografar; chegar na hora marcada; não demorar mais que 20 minutos.

Não teria demorado mais não fosse Cascudo um indisciplinado, um homem de não se pôr arreios e um entusiasta da conversa. Excitou-se diante de uma ou outra pergunta e falou como fala um mestre barroco, como ele era.

A única coisa que não gostei naquela última conversa foi o fato de que saí dela com a sensação de que aquela seria a última entrevista de Cascudo, ao menos para mim.

Mais de 30 anos depois daquele encontro e 29 depois da morte do "provinciano incurável", ainda soam em mim as últimas palavras que ouvi do velho mestre. Eu, sentado num tamborete na sala do casarão histórico, sob os olhares carinhosos, mas vigilantes, de dona Dália, "a vítima jubilosa" como chamava a esposa. Ele, na velha cadeira de balanço de palhinha, óculos grossos e lupa na mão, mal olhando as perguntas escritas por mim em letras grandes, mas respondendo-as com entusiasmo.

Apesar das perguntas escritas e de eu não poder interferir durante as falas, como é hábito dos jornalistas, a entrevista não foi difícil ou improdutiva. Ao contrário. Cascudo dava respostas tão completas que prescindia de esclarecimentos. Observei que puxava a "conversa" para assuntos pessoais. Queria falar de si, justo ele que, quando indagado sobre esse tema, sempre rebatia lacônico, chamando-se de "um brasileiro feliz" ou "um provinciano incurável", e mudava de assunto.

A partir de um determinado ponto das respostas que me dava –ainda tenho a gravação em fita cassete– Cascudo começou a se pôr dentro delas, sempre de maneira confessional. Assim, de repente, ele lamentou não ter forças para levar adiante o projeto do último livro, que, não à toa, se chamaria "Antes da Noite".

Quando mencionei a leitura, olhou para os livros amontoados ao lado da cadeira de balanço e saiu-se rápido: "Não posso ler. Patino nos livros, somente".

"Um brasileiro feliz, é o que sou" disse, como que abrindo uma janela já bastante conhecida dos seus interlocutores para em seguida passar a espaços mais ocultos. "Compreendi minha vida e vivo a minha vida. Não vivi a dos outros. Estudei o que amava. Pesquisei e discuti sobre o assunto que queria escrever. O comum é aparecer uma novidade e o sujeito largar tudo o que está fazendo e fazer a novidade. Nunca saí da cultura popular."

Alas inteiras do casarão de Câmara Cascudo ostentavam –ainda hoje guardam, preservadas pelo memorial gerido por seus descendentes– centenas de assinaturas de visitantes ilustres, condecorações, medalhas, títulos e diplomas. Olhava para elas quando o mestre respondeu a uma das perguntas: "O segredo da vida está no entendimento. Se você não entende a vida, torna-se um desajustado. É o professor querendo ser senador, e o senado se interpondo entre ele e a cátedra. Foi grande o número de convites que recebi para sair de Natal. Mas casei com a moça que queria e fui o que quis ser, um professor".

Então, fitando aqueles olhos agigantados pelos óculos de muitos graus, o pijama tornado fardão, perguntei sobre a morte, e a voz dissociada da audição que às vezes soava decibéis acima do natural trouxe lá do silêncio da alma a resposta de quem tinha transformado os reveses da vida em degraus para cima: "Deixo isso para os filósofos. Eu não tenho tempo para olhar a morte, a miséria, o desespero, a angústia".

OSAIR VASCONCELOS, 61, jornalista potiguar, é autor de "As Pequenas Histórias" (Z Editora).


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