Folha de S. Paulo


PONTO CRÍTICO

Instante e vida decisivos de Claudia Andujar

A fotógrafa Claudia Andujar nasceu na Suíça e foi criada em Oradea (Transilvânia), uma localidade que em sua infância teve alternadamente bandeiras húngara e romena (hoje é parte da Romênia), filha de pai judeu e mãe suíça, de religião protestante.

Na Segunda Guerra Mundial, ela sobreviveu ao extermínio dos judeus húngaros pelos nazistas quando a mãe fugiu de volta para a Suíça. Depois da guerra, viveu com tios judeus em Nova York e de lá partiu em 1955 para visitar o Brasil, onde ficou. Quando perguntada sobre sua identidade, se judia, húngara, romena, suíça, protestante, brasileira, diz: "ianomâmi".

Como afirmam as cerca de 400 fotografias que compõem a exposição no pavilhão dedicado a sua obra no grande parque artístico de Inhotim (em MG), os ianomâmis são o fundo e a forma, o meio e o fim da criação de Claudia Andujar.

William Gomes/Divulgação
Fachada do pavilhão da fotógrafa Claudia Andujar em Inhotim
Fachada do pavilhão da fotógrafa Claudia Andujar em Inhotim

Por essa perspectiva de longo curso, ela refuta a ideia consagrada por Henri Cartier-Bresson de que a grande foto é fruto de um "instante decisivo" em que o fotógrafo encontra o equilíbrio perfeito de todos os elementos que devem compor a cena, que assim se torna paradigmática.

"Eu nunca tentei chegar a uma foto que resumisse tudo. Ao contrário, sempre tentei me aprofundar muito no que estava querendo transmitir", disse a artista, referindo-se ao conceito de Bresson, em entrevista para a Folha em 2014.

Antes de encontrar os ianomâmis, Andujar já tinha obtido reconhecimento com exposições e publicações aqui e no exterior. Por isso participava do time de fotógrafos da "Realidade", da editora Abril, brasileiros e estrangeiros que formavam a elite da fotografia brasileira da época. Seus trabalhos incluíam ensaios experimentais de moda e reportagens impactantes sobre drogas, espiritismo e homossexualidade, entre outros temas candentes da época, como mostrou recente exposição no Instituto Moreira Salles no Rio.

Foi para um número especial da revista que ela viajou para a Amazônia em 1970. Embora em outro sentido, talvez esse tenha sido seu "instante decisivo", o momento em que sua biografia cruza com a que viria a ser sua identidade.

O fascínio do povo isolado subitamente ameaçado pela abertura de estradas pelo governo militar atraiu a fotógrafa a morar com os índios, com uma bolsa da Fundação John Simon Guggenheim, a partir de 1971. Dessa imersão, só saiu quando foi expulsa da área pela ditadura. Fundou uma ONG para fazer a campanha pela criação do Parque Yanomami (CCPY), viajou o mundo denunciando o martírio dos índios. Em 1992, viu o efêmero governo Collor homologar a terra como a maior área indígena do país.

Claudia Andujar
"Arajani" (1981-83), de Claudia Andujar, da série "Marcados", presente em seu pavilhão em Inhotim

Andujar seguiu fotografando os ianomâmis até 2010, como mostra a exposição. Mesmo depois disso, vem criando novas imagens a partir de negativos anteriores, produzindo no computador fusões que resultam em fotos oníricas.

Nessa trajetória, a técnica usada em cada foto maximiza a percepção de elementos da cultura: o preto e branco predominante permite a tradução do escuro de uma maloca indígena, quebrado apenas por estalactites de luz; já as pinturas dos rostos são destacadas em fotos coloridas.

Em busca de penetrar a alma dos índios, nas vindas a São Paulo nos anos 1970, Andujar estudou técnicas e filmes necessários para simular as visões dos xamãs em transe, no escuro. O resultado são imagens em que os corpos em movimento parecem nuvens. Até fotos de estilo 3x4 usadas para registrar o processo de vacinação dos índios nos anos 80 ganham dimensão dramática na série "Marcados", que a autora associou à memória dos judeus de sua infância, numerados antes da morte.

Se não se adequa ao conceito de Bresson, a obra de Andujar talvez possa ser considerada como fruto de uma "vida decisiva", em que os fotogramas são parte de uma única busca, ao mesmo tempo antropológica, da cultura dos índios, e interior, da identidade da autora.

LEÃO SERVA, 55, é jornalista, autor de "Um Tipógrafo na Colônia" (Publifolha).


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