Folha de S. Paulo


análise

Atingir Paris foi claro ataque aos valores de laicidade e de liberdade

Nos dias que se seguiram aos atentados em Paris, as homenagens à França pelo mundo afora levaram a um forte patrulhamento nas redes sociais. Por que tanto sentimento em relação à França e não ao Líbano, à Nigéria, ao avião que explodiu no Cairo? Culpa da imprensa, culpa da alienação eurocêntrica.

Essa reação ficou ainda mais forte no Brasil por causa da devastação ocorrida no Rio Doce. Era curioso assistir a um patriotismo macabro: a nossa desgraça é mais desgraça do que a dos outros. As acusações se sucederam: amor pela França maior do que amor pelo Brasil; Paris não pôs as cores da bandeira brasileira na torre Eiffel como nós fizemos com o Cristo Redentor.

Ora, um atentado desse tipo em Tóquio, em Berlim, em Washington, certamente não produziriam os mesmos sinais de solidariedade. Não me lembro, quando do ataque às torres gêmeas em Nova York, com um número de mortes muitíssimo maior do que em Paris, monumentos iluminados em diversos países com as cores norte-americanas ou o hino nacional dos Estados Unidos ressoando pelo mundo antes de um concerto ou de um encontro esportivo.

A imprensa internacional assinalou um dos motivos dessa simpatia pela França. Paris é uma cidade amada pela sua beleza, pela arte de viver. Acolheu, nos tempos ferozes das ditaduras latino-americanas, tantos refugiados. Se a presença da cultura francesa diminuiu bastante no mundo de uns quarenta anos para cá, se o francês deixou de ser uma língua preponderante como era, o afeto pela França se manteve.

Há, no entanto, uma causa mais profunda. Da revolução francesa a 1968, a França foi portadora de ideais libertários. Foi a cultura francesa que criou, no século 18, o chamado pensamento das Luzes, o Iluminismo, inventando os princípios laicos, racionais, universais, de liberdade, igualdade e fraternidade. Quando Jefferson dizia que todo intelectual tem duas pátrias, a sua própria e a França, não se referia a um país ou a um povo, mas a uma visão filosófica da humanidade que correspondia à mais alta dignidade humana.

Essa França ideal e teórica não se limita ao seu território. Ela está nas convicções de todos aqueles, onde quer que estejam, capazes de perceber a humanidade como uma só, sem fronteiras, fraterna, igualada pelos poderes da reflexão e do pensamento. Foi por ela que os monumentos do mundo se vestiram de azul, branco e vermelho; foi por ela que Placido Domingo fez ressoar a "Marselhes"a no Metropolitan Opera de Nova York.

O fanatismo fundamentalista não deve ser pensado como irracional em todos os campos. Sem reflexão estratégica, ele não teria o poder que tem. No campo simbólico, tal estratégia mostra-se muito fina.

Escolher as torres gêmeas como objeto de ataque significava atingir o coração de uma potência imperialista. Atingir Paris expressou um claro ataque aos valores de laicidade e de liberdade. Fuzilar um concerto de rock constituiu uma denúncia da decadência, dos prazeres imorais e irreligiosos. E mesmo a data, sexta-feira 13, conjunção que encarna uma superstição ocidental, não me parece ser gratuita.

Na França, o livro de maior venda depois dos atentados é o "Tratado sobre a Intolerância", de Voltaire, o pensador que mais e melhor encarnou os valores das Luzes, aquele que mais se bateu pela laicidade e que acusou as religiões. Não sei, mas se os ataques parisienses tiveram como eixo o bulevar Voltaire talvez isso não tenha sido pura coincidência. Os terroristas identificados eram todos franceses; todos frequentaram as escolas públicas; todos leram Voltaire e conheciam o Iluminismo, pensamento que se tornou para eles o grande inimigo a exterminar.

Não se podem ignorar, entre as razões, a política externa francesa, seus ataques de guerra ao islamismo. Também, a presença de uma vasta comunidade muçulmana em seu território favorece, pela quantidade, o surgimento de radicalismos. Philippe Faucon, cineasta recentemente homenageado pela cinemateca de Paris e perfeitamente ignorado por estas bandas, reflete em seus filmes sobre a relação entre muçulmanos e franceses. Em "La Désintégration", título que contém um duplo sentido, o de desintegrar, como sinônimo de explodir, e como o oposto de integrar (integrar-se à cultura francesa), ele expõe de modo admirável os processos de cooptação.

O alvo verdadeiro, porém, era menos a nação que a cultura libertária nela desenvolvida.

Para além de consequências circunstanciais (tiradas demagógicas do governo francês tentando capitalizar os acontecimentos; acusações de incompetência por parte da oposição; reforço do Front National, partido xenofóbico de extrema-direita) há uma, mais generosa, que se passa também no campo simbólico.

Os franceses haviam deixado de levar a sério seus símbolos nacionais, em particular o hino e a bandeira. Esses haviam sido contaminados pela recuperação que a extrema-direita fazia deles. Essa apropriação patriótica causava repulsa. Nos jogos internacionais, alguns futebolistas franceses, sobretudo os de origem magrebina, se recusavam a cantar a "Marselhesa". O valor que passou a aglutinar os franceses foi o de república, república que se levantava contra os extremismos.

Ora, o mundo lembrou à França os valores mais profundos de seus próprios símbolos. Eles tornaram-se menos a expressão de uma pátria do que a de ideais elevados. Por ora, as reações parecem ser as de redescobrir esses valores.

Se o ataque ocorrido na sede do jornal "Charlie Hebdo" não provocou respostas unânimes, já que uma parte dos muçulmanos franceses lembrava que o jornal, segundo eles, insultara o Islã, agora a unanimidade se faz. Quando as escolas pediram um minuto de silêncio pelos mortos de "Charlie Hebdo", muitos alunos de origem magrebina protestaram. O minuto de silêncio pelos mortos recentes, segundo todos os relatos, foi agora respeitado com gravidade nas escolas.

JORGE COLI é crítico de arte e professor de história da arte titular da Unicamp.


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