Folha de S. Paulo


Ficções militares

Rio de Janeiro, 1969

Em 1969, eu morava com a minha mãe, Tati, na praça General Osório, em Ipanema. Ali perto estavam outros amigos, como Rubem Braga, que avistávamos em sua cobertura da janela do nosso apartamento. Mas àquela altura Ipanema já não era mais a mesma.

Desde 1964 eu já não frequentava muito o bar Jangadeiros, e as minhas musas não se banhavam mais na praia do Arpoador. O período pós-1968 tornava-se um dos mais negros da ditadura militar. Um ano antes eu havia presenciado –participado e fotografado– as manifestações estudantis e a duríssima repressão militar. Estávamos todos assustados, traumatizados. Na verdade, nem todos.

Era um dia de semana de 1969, e eu andava pelas ruas do bairro quando me deparei com a praça onde morava tomada por uma imensa exibição do Exército, que espalhou pelo lugar metralhadoras, fuzis, morteiros, tanques, toda sorte de munição. Era um cenário ameaçador disfarçado de pequeno parque de diversões.

Pedro de Moraes
Criança diante de tanque na praça General Osório, em Ipanema, durante demonstração militar em 1969
Criança diante de tanque na praça General Osório, em Ipanema, durante demonstração militar em 1969

Várias crianças, alheias a todo o duro contexto do período, assistiam fascinadas à demonstração de soldados feridos, às palavras de ordem, oficiais em ação. Muitas vezes, pareciam elas mesmas pequenos soldados manuseando as armas de fogo, observadas por pais orgulhosos.

Além de toda perplexidade, o que minha memória me permite lembrar é que a feira de exibições militares ocupou a nossa pacata praça com nome de general por cerca de uma semana naquele ano de 1969. Durante esses dias o Exército apresentava, em um aparentemente contraditório movimento de relações públicas com a população, sua força mecânica, tendo sempre público garantido: passantes, moradores, famílias inteiras assistiam curiosos e, por vezes, encantados, às demonstrações militares.

As cenas eram impactantes, sobretudo pelo contraste que exibiam entre as crianças que passeavam pela praça e se misturavam com todo o armamento pesado; entre a inocência da infância e aquele contexto de guerra. Eram, de fato, tempos de contraste. Um momento de imensa solidão. Acabara a boa boêmia carioca; os amigos não se encontravam mais na praia; não podíamos receber parceiros em casa, já que qualquer encontro com mais de seis pessoas era suspeito e poderia render ao local de reunião a acusação de "aparelho".

O medo atravessava a vida. Ao mesmo tempo, continuava com minha câmera fotografando nas ruas, e nascia minha primeira filha, Mariana.

Quando fui editar meu livro "Vi Vendo", alguns anos depois, a cena voltou à cabeça. E, junto com o Rubem Braga e meu pai, Vinicius, que me ajudaram na seleção das fotos, e Hélio Pellegrino, que fez o texto da edição, achei que uma das imagens dessa série serviria como uma narrativa contundente daquele momento do Brasil.

A foto, com um menino louro em frente a um tanque, colocando em quadro apenas os dois –a criança, o tanque–, omitindo o cenário da praça carioca, criava um tom enigmático, aparentemente sem lugar, quase ficcional.

O período foi mesmo quase uma ficção. Como imaginar que aquela cena acontecia na praça de Ipanema onde antes se vivia o fascínio das paixões, a alegria da música, os prazeres da juventude?

Hoje, mais de 40 anos depois, essa imagem é também uma metáfora. Aquele tanque, imponente, poderia esmagar o pequeno menino, assim como a ditadura esmagava os sonhos e a liberdade da minha geração. Mas a nossa resposta foi, a despeito de todo o horror, continuar vivendo.

PEDRO DE MORAES, 73, fotógrafo, relança agora "Vi Vendo" (Bazar do Tempo), livro de fotografias editado em 1976.


Endereço da página: