Folha de S. Paulo


A despedida mágica de Cristina

"Não foi mágica". A frase estampa camisetas e broches com a imagem da presidente Cristina Kirchner, que se despede do cargo em 10 de dezembro, encerrando 12 anos de kirchnerismo na Argentina.

O bordão repetido nesses últimos dias de governo expressa o legado da carismática presidente, que turbinou as políticas sociais e o discurso nacionalista.

Com o fim do mandato de Cristina, mudarão alguns costumes que passaram ao cotidiano dos argentinos. Será o fim das aparições constantes em rádio e TV, algumas com duração de horas. Os dois presidenciáveis em campanha não têm o mesmo perfil "comunicador" de Cristina. O opositor Mauricio Macri, inclusive, tem como uma de suas promessas de campanha o fim das cadeias nacionais.

Patricio Murphy - 25.out.15/Brazil Photo Press/Folhapress
O candidato Mauricio Macri durante eleição presidencial em Buenos Aires
O candidato Mauricio Macri durante eleição presidencial em Buenos Aires

Sem teleprompter ou discurso escrito, a mandatária comenta as notícias dos jornais, manda recados a aliados e opositores, faz piadas e comete gafes, como quando falou que uma pessoa era velha aos 80 diante de uma das Mães da Praça de Maio –com seus mais de 80 anos. Cristina não enrubesce, solta um gritinho e pede desculpas.

Em sua última aparição, arriscou passinhos de dança ao final do discurso –desta vez foi um jingle de campanha, mas já dançou rock argentino e música folclórica.

Neste dia, Cristina falou em "pipas cósmicas", com as quais o ex-presidente Néstor Kirchner (morto em 2010) se sustentaria no espaço ao lado dos satélites lançados pela Argentina. Os jornais criticaram o excesso de esoterismo presidencial.

Os pátios da Casa Rosada também não receberão mais a multidão de "muchachos de la Cámpora", agremiação simpática a Cristina que assiste aos seus discursos espremida, esperando ver a líder saudar a turma dos balcões internos da casa de governo. Nem Macri nem o candidato da situação, Daniel Scioli, têm o apreço dos camporistas.

NEM PISCINAS, NEM PINGUINS

Os argentinos também deverão se despedir do protagonismo de Santa Cruz, Província no extremo sul do país de onde vieram os últimos dois presidentes.

Na capital, Río Gallegos, os eleitores do filho de Néstor e Cristina, Máximo Kirchner, esperam que ele atraia as atenções em sua cadeira na Câmara dos Deputados. Querem evitar o destino de La Rioja, que entrou em baixa com a saída de Menem (1989-99) do poder.

Nos dias anteriores ao primeiro turno eleitoral, em 25 de outubro, Cristina inaugurou duas piscinas públicas na cidade. Disse que Néstor só sabia nadar cachorrinho porque não teve onde fazer natação.

No dia do pleito, porém, as piscinas estavam vazias e o polo aquático, com obras e reparos ainda por fazer. Do lado de fora, os amigos Jonas e Jorge, ambos com 17, diziam que as piscinas eram menores do que as de um clube da cidade. Estavam frustrados com a promessa presidencial desativada. Jonas disse aprovar a ideia, mas reclamou de que onde morava, na periferia da cidade, não havia saneamento básico.

TRENS NACIONAIS E POPULARES

O governo de Cristina despede-se com a estatização do sistema de transporte ferroviário do país. Nascido estatal, o sistema cresceu no final do século 19 bancado pelo capital inglês. Em 1915, o país tinha uma das dez maiores malhas ferroviárias do mundo. A Argentina era uma potência.

Sob Perón, os trens foram estatizados, e após décadas de abandono e falta de investimentos, privatizados nos anos 1990. Mas o serviço não melhorou. Cristina tomou para si a tarefa de ressuscitá-los e estatizou tudo de novo.

Na Noite dos Museus, único dia do ano em que ficam abertos até 3h da manhã, alguns argentinos curiosos faziam uma longa fila no Museu Ferroviário, no bairro do Retiro, para ver as antigas e as novas máquinas em circulação.

Dentro do edifício de estilo inglês, é possível reencontrar aquela Argentina que foi um dia uma locomotiva. Louças pintadas à mão importadas da Inglaterra, chapéus, fotos e máquinas são sobreviventes do estilo que circulava então.

PIOLA

Mariano Blatt é um poeta argentino cujas histórias têm personagens da periferia, drogas e amores homossexuais. Um de seus poemas mais conhecidos, "Todo Piola" está em cartaz no teatro, no diminuto Teatro do Abasto. Para quem está curioso, dá pra ouvir o autor declamando seu poema no YouTube.

MARIANA CARNEIRO, 36, é correspondente da Folha em Buenos Aires.


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