Folha de S. Paulo


Longínquo atroz

"Ao testemunhar tua aparição, descobri que a proximidade, a mais intensa, se dá junto da distância mais distante." (Juliano Garcia Pessanha)

O título experimental, de trabalho, do livro "Rabo de Baleia" de Alice Sant'Anna era um verso: "longe é uma palavra longa". A poética da autora não tem começo e fim explícitos: é sub-reptícia, insinua, mas não disserta. O título definitivo lembra a conhecida metáfora de Hemingway sobre o ato de escrever: deve-se mostrar, somente, o cume do iceberg e não todo ele, assim como não toda a baleia. À imaginação do leitor cabe, seguindo as pistas, completar a sugestão. A arte poética de Alice, portanto, é feita de substratos como esse verso deixado para lá, desgarrado e invisível, e agora, depois de um telefonema comprido com a poeta, comecei a escrever a partir dele.

De início me pergunto: qual a razão desse sintagma (ou sintoma?) não me sair da cabeça? Apesar dessa fixação, não conseguia me lembrar dele com nitidez, pois se embaralhava com outro título de livro de poesia, o de Gullar: "em alguma parte alguma". Este aparece manuscrito, com minúsculas, na capa do livro e na sua folha de rosto, me fazendo sentir os poemas ali recolhidos como recortes, segmentos, de um único fluxo da aspiração, se espalhando.

A minha confusão, percebo, deve ser porque ambos falam de uma paragem longínqua e imprecisa. Se escritos em uma só linha "Em alguma parte alguma, longe é uma palavra longa" ou "Longe é uma palavra longa em alguma parte alguma" seria um belo poema com uma meteorologia incerta, um lugar imaginário, um não-lugar, ainda não mnemônico, habitado como Pasárgada, por exemplo.

Um lugar, um limbo, algo que está prestes (ou não) a ganhar forma e significado ainda distantes. Incentivado por essas associações consegui chegar a um poema concreto de Bandeira: nele, o substantivo onda ligado ao verbo anda e este aos advérbios onde e ainda, em marés sucessivas, me levaram ao mar debussysta, compositor celebrado pelo poeta no seu poema "Debussy". Não há mar na composição, mas um simulacro do seu sistema, através da figuração de um novelo de linha oscilante, para lá e para cá, com reticências pontuando os versos, mais perto do vaivém "marítimo" de perda e recuperação, do que em gerar um movimento suspenso e sublime do desenrolar do "novelozinho de linha", uma espécie de velocímetro ou metrônomo do andamento da poesia entre vigília e sono, acabando por cair da mão de quem o manipula, e o poema para, mas continua como uma onda andando e desandando no seu fort-da incessante...

Mas essa localidade não tem pouso, nome, geografia. Ela é movediça, inventada quando em vigília, ou sonhada, quando não; naquele espaço curto, enfim, longo quando esses dois estados se entrelaçam e não se resolvem de pronto, e ficam inquietos, talvez por não ter nenhum fiel de balança à vista.

De todo modo, se pode especular; se é poesia ela cabe em qualquer pedaço de papel, por mais impróprio: desde o caderno circunspecto à tira rasgada na beira do jornal sem nenhuma perda substantiva e até mesmo em cima de um suporte surpreendido, tal como a palma aberta da mão recebendo o que a outra escreve.

Clarice Lispector escreveu metaforicamente assim, na palma da própria mão, no âmbito do próprio corpo, embora, na vida despida de metáfora, ela escrevesse com a máquina de escrever entranhada no colo, com um retalho de música de concerto ao fundo, no meio da casa, fumando, cercada de papeluchos de anotações, tal qual escamas de sua pele descascando sob o sol da criação sendo impressas no corpo textual, como tatuagens indeléveis, marcando a lembrança dos seus leitores, irremediavelmente. Diverso daqueles escritores metódicos munidos de cadernetas preparatórias, amparo inaugural do pensamento aleatório e nebuloso, se firmando naquilo segregado por ele, quase em segredo, na tábua da mesa deixando às vezes na madeira um vestígio do pensado, repensado, recalcado: um resquício da matéria, não completamente aproveitada (ou apagada) retratando o restante, cerebrino, que ficou à espera para todo o sempre de um ensaio de fantasia.

Este texto se iniciou com uma vaga ideia largada à margem. Alguma coisa abordando a distância (ou à distância), (d)a existência nesse páramo, vigente entre dois pontos: o da partida e o da chegada, como no percurso da fábula da tartaruga e da lebre. Mas o vento da deriva chegou sem previsão e a escrita ao incorporar, nesse momento, de improviso e ao vivo, a tartaruga e a lebre, não conseguiu o desenvolvimento necessário. Apesar do esforço, não logrou objetivar, a contento, a subjetividade inerente da fábula anunciada.

Todo um parágrafo, farpado de emendas e rasuras foi cortado. A tartaruga e a lebre não ilustraram a página com suas modalidades distintas de tempo e o seu significado profundo. A distância continuou a ser uma terra de ninguém sem norma e continuidade –um território abstrato– sem legenda, ou, pelo menos, sem uma geologia sumária dos sentimentos informadores e deformadores da travessia.

Esse anseio se perdeu. A falta se faz sentir em quem escreve e de quem lê, creio; na mesa de quem escreve, na página estampando a sombra de quem escreve sob a luz, debaixo do silêncio da leitura.

Não obstante, a vontade de entender a distância, o vivido entre os dois extremos, entre a viagem e a morada, insiste, mesmo frustrada; o familiar e transitório no itinerário, o déjà vu se reformulando com seu mecanismo fugaz, orgânico, e de estranhamento, parecido com o engenho do sonho, com sua linguagem e ordenação "godardiana": um ir e vir indistintos.

Sendo assim a continuação deste escrito é realizada sem norte e amparo: só resta a ele uma posição onírica, passiva por natureza, nos laços e desenlaces desenhando-se junto ao pensamento, desligados de outra mediação, apesar de ela existir, mas não de maneira clara e ostensiva, realizando-se apesar de si mesmo, pois a mão escritora, se é sua, não é a da sabedoria, mas a do experimento, arrastando-se no suporte paradoxal, seja ele qual for, torcendo e se retorcendo por seu fim e prosseguimento ao mesmo tempo, impulsionado por idêntico desejo contraditório.

Com isso na cabeça, a tentativa agora é de reunir num resumo os motivos emergentes, à flor da folha, germinantes, sabe-se lá como, ao correr da pena ou dos dedos digitais, sem bússola, bula e algoritmos disponíveis.

Como achar o nexo, através da escrita, das microssensações provocadas por um título afastado, oculto e o outro exposto, público, além dessa enumeração desalinhada? Retorno, teimoso, à fábula da tartaruga e da lebre. Afinal, a primeira é a meditação e a segunda a velocidade do pensamento; dois atributos díspares, animando o cérebro, flagrando a distância entre elas. A nossa distância fundamental talvez seja esta surgindo, velocilenta, no percurso escuro das duas raias geminadas se encontrando no infinito do mais longínquo horizonte alcançado pelo olhar.
Por isso mesmo, acredito não haver vitória nessa competição, como quer a moral da fábula. A tartaruga não se resume na ruga da meditação sábia, nem a lebre se reduz à cegueira da velocidade. Ambas se comunicam o tempo todo porque uma depende da outra para almejarem o impossível, por acreditarem, que vão chegar a uma outra vida, à salvação, ao fim da aventura a descoberto, conjugadas. Cultivam nesse empate/embate, presas às respectivas estratégias, a ilusão de alcançar o não saber, ou quem sabe, ao título do CD de Arrigo Barnabé e Luiz Tatit: "De Nada Mais a Algo Além".


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