Folha de S. Paulo


Arthur Danto, a interpretação e a história no fim da arte

RESUMO O artigo apresenta as ideias do filósofo norte-americano (1924-2013). Para ele, o maior problema da estética seria identificar a diferença entre obras de arte e meras coisas –como as caixas de sabão Brillo de Andy Warhol, idênticas às vendidas em supermercados. A resposta está na interpretação e na história.

Para muitos teóricos a questão central da estética consiste em saber o que é arte e, portanto, julgam que a principal tarefa desta disciplina filosófica seria a busca de uma definição capaz de explicar por que várias obras de períodos e aparências distintas podem ser todas consideradas arte e por que elas diferem de outros objetos que não consideramos obras de arte.

Algumas definições de arte são baseadas em qualidades imediatamente visíveis nas obras, enquanto outras defendem que para ser considerado arte é preciso conhecer o contexto no qual um determinado objeto foi criado, ou como ele é recebido: de que modo ele é apresentado, como é fruído, e assim por diante.

Para outros teóricos, contudo, os conceitos de experiência estética e de criação artística, por exemplo, são mais importantes que uma definição de arte. Existem, inclusive, aqueles que não acreditam que seja possível definir arte ou, ainda, que uma definição de arte seja algo inteiramente inútil.

O filósofo norte-americano, Arthur Danto, morto há dois anos (25/10/2013), pertence ao primeiro grupo. A partir do primeiro contato com as "Brillo Boxes" de Andy Warhol, Danto teria tido o insight de que, naquele momento, a arte estava passando para a esfera da filosofia. Porém, ao tornar-se cada vez mais consciente daquilo que ela é e, desse modo, assumindo um caráter reflexivo comparável ao da filosofia, a arte teria confirmado as previsões de Hegel, chegando a um termo.

Naquele momento, Danto percebeu que a arte passaria a não apresentar nenhum modo específico de existência, tornando a história dos estilos algo sem sentido, o que o motivou a afirmar que desde então vivemos em um período no qual a arte é pós-histórica, ou seja, ela pode continuar existindo –embora Danto desconfie que muitas instituições ao seu redor venham a se transformar a longo prazo–, mas ela não terá mais relevância para a história da arte.

SUPERMERCADO

Para Danto, o maior problema filosófico da arte consiste em identificar qual é a diferença entre obras de arte e meras coisas. Se as caixas de sabão em pó no supermercado são meras coisas reais e as caixas de sabão em pó aparentemente idênticas apresentadas por Warhol são obras de arte, deve haver uma definição de arte que permita que digamos que as "Brillo Boxes" de Warhol são arte e as caixas de sabão em pó no supermercado não o são –só que essa definição de arte não pode se basear em nenhuma característica percebida nos objetos e, portanto, não é uma definição que dependa da experiência estética proporcionada pelos objetos em jogo, pois não existe diferença estética entre dois objetos aparentemente indiscerníveis.

Portanto aquilo que distingue esses objetos não pode ser algo sensível. Isso não significa que as obras não proporcionem uma experiência estética, mas simplesmente que a noção de estética esteve ligada por muito tempo à ideia de um sentimento do belo, ou de algo apreendido pelos sentidos, quando responder esteticamente a algo pode ser uma ação intelectual, como ocorre quando um objeto extraído do cotidiano é experimentado como arte.

Segundo Danto, é possível explicar por que, dentre dois objetos aparentemente idênticos, um pode ser uma obra de arte e o outro não, em grande parte por meio da história. Nesse sentido, Danto reafirma, a seu modo, a conhecida proposição de Heinrich Wölfflin (1864-1945) –posteriormente adotada por Ernst Gombrich (1909-2001)– segundo a qual, em arte, "nem tudo é possível em todos os períodos".

A solução para discernir qual, dentre os objetos idênticos, é obra de arte e qual não é, já havia sido apresentada em "A Transfiguração do Lugar Comum" (trad. Vera Pereira, Cosac Naify, 2006), publicado em 1981. Consiste em reconhecer que dentre estes dois objetos um é sobre algo, e o outro, não: a fonte de Duchamp é sobre algo, um outro urinol qualquer não é. Aí reside a transfiguração. Mas saber que um daqueles objetos idênticos é sobre algo, e o outro não já é uma interpretação: é a interpretação aquilo que faz de uma mera coisa uma obra de arte. É a interpretação a operação que transfigura uma mera coisa em arte.

Daí a necessidade da história, pois se a obra só existe acompanhada da interpretação, como um objeto poderia ser acolhido como obra de arte em um contexto no qual não existisse um conceito para abrigá-lo? Como poderíamos interpretar as pinturas de pinceladas ("Brushstroke Paintings") de Roy Lichtenstein sem situá-las em relação ao expressionismo abstrato, por exemplo?

Podemos compreender melhor o que significa interpretação para Danto a partir da leitura de "O Descredenciamento Filosófico da Arte" (Autêntica) –livro publicado em 1986, lançado no Brasil no ano passado, com tradução do filósofo Rodrigo Duarte que, transitando com naturalidade entre os universos da estética, da teoria da arte e da história da arte, cumpriu a difícil tarefa de preservar a espontaneidade e o senso de humor característicos do autor. Nessa obra, a noção de interpretação ganha novos contornos, passando a ser fundamental entender que ela não é exterior à obra: "Obra e interpretação surgem juntas na consciência estética", escreve ele ali.

A interpretação não apenas é inseparável da obra, como ela é inseparável do artista; ela é uma "restauração imaginativa", portanto existem interpretações certas e interpretações equivocadas. Danto não é um relativista: se interpreto que um urinol que não foi proposto por um artista é uma obra de arte, estou dando uma interpretação errada para algo que é, na verdade, uma mera coisa.

Nessa medida, a definição de arte de Danto reverbera, a seu modo, a distinção estética tradicional entre arte e natureza estabelecida por Kant: se eu tomo por arte algo que é um objeto natural, algo que não foi criado para ser arte, estou emitindo um juízo errado. "Diante de um produto da arte bela tem-se que tomar consciência de que ele é arte", pois "a arte tem sempre uma determinada intenção de produzir algo", escreveu o filósofo alemão na "Crítica da Faculdade do Juízo".

INUTILIDADE

O descredenciamento filosófico da arte parte do argumento segundo o qual a filosofia, desde Platão, preocupou-se em mostrar que a arte não poderia ser objeto da filosofia. Exatamente por isso filosofia e arte são inseparáveis, pois a filosofia se define, com Platão, em contraposição à arte. Posteriormente, com o prazer desinteressado postulado por Kant, a arte passa a ser associada à ideia de inutilidade. E a própria denominação "belas artes" seria uma maneira de impedir que as artes fossem objeto de uma reflexão filosófica mais cerrada, graças às suas associações com o sentimento, de maneira análoga ao uso da expressão "belo sexo" que, delicadamente, exclui o gênero feminino de qualquer debate mais denso, por sua suposta fragilidade.

Desse ponto de vista, a invenção da estética no século 18 representaria um distanciamento da filosofia em relação à arte tanto quanto a filosofia platônica.

A arte contemporânea, por sua vez, abandonou o objetivo de proporcionar prazer estético para colocar, ela mesma, a interrogação filosófica acerca da definição de arte. Se em "A Transfiguração do Lugar Comum", a obra que Danto elege como agente deste deslocamento são as "Brillo Boxes" de Warhol, em "O Descredenciamento Filosófico da Arte" este papel é desempenhado ora pelo urinol, ora pela pá de neve de Duchamp.

Aos olhos de Danto, Duchamp teria colocado a questão filosófica na própria obra e, a partir daí, a definição de arte teria passado para o campo da filosofia –o fim da arte significa que a arte passa a acontecer no âmbito da filosofia da arte: "Quando a arte interioriza a sua própria história, quando ela se torna consciente da sua história, tal como aconteceu em nosso tempo, de modo que sua consciência de sua história faça parte de sua natureza, talvez seja inevitável que ela deva se tornar finalmente filosofia. E quando ela faz isso, bem, num sentido importante, a arte chega a um fim", escreve.

O que causa espanto aos leitores novatos de Danto é o fato de ele tentar conciliar a ideia de que a recepção da arte é necessariamente histórica com a certeza de que a arte tem uma definição universal.

Ora, frequentemente defende-se a posição segundo a qual os objetos e o espaço pintado são signos de uma linguagem visual que precisa ser aprendida socialmente. Uma das investigações mais rigorosas e sistemáticas sobre o fato de a arte ser uma linguagem encontra-se na obra de Nelson Goodman, "Linguagens da Arte", publicada em 1968, traduzida em Portugal em 2006 pela editora Gradiva, na qual cada arte é entendida como um tipo de sistema simbólico.

Assim como Danto, Goodman defende que um mesmo objeto pode funcionar como símbolo estético em um certo sistema, mas não funcionar em outro –porém, no seu caso, pelo fato de as obras de arte desempenharem uma função cognitiva na medida em que são símbolos e participam de sistemas simbólicos regidos por regras sintáticas e semânticas próprias.

Danto se contrapõe à polêmica tese de Goodman, pois discorda de que toda representação, inclusive a representação pictórica figurativa, seja tão convencional quanto uma descrição ou uma representação linguística.

Enquanto Danto defende o essencialismo, Goodman acredita justamente que um dos motivos pelos quais um objeto pode ou não funcionar como símbolo estético repousa sobre sua convicção segundo a qual não existe uma definição de arte, já que não existem características comuns a todas as obras de arte.

Para Goodman, a questão que merece ser colocada diz respeito às circunstâncias nas quais um objeto pode funcionar como símbolo estético, o que vem a ser o mesmo que investigar se o objeto em questão está ou não integrado a um sistema simbólico estético. E, uma vez que sistemas simbólicos são construções humanas, sua natureza é convencional.

A ideia do fim da arte e da sua dissolução na filosofia, advogada por Danto, é perfeitamente compatível com boa parte da arte que vem sendo desenvolvida desde meados dos anos 1960. Tanto o minimalismo como a arte conceitual concebem suas obras como reflexões acerca da natureza da arte, chegando mesmo a considerar que suas obras seriam proposições.

Aliás, desde Duchamp e Malevich a questão da natureza da arte já começara a ser colocada pelas próprias obras. Sensível à realização do conceito nas próprias obras, o que Danto quer nos mostrar é que essa realização não se esgota nas obras, mas precisa da interpretação e que ela, necessariamente, é histórica.

ROSA GABRIELLA DE CASTRO GONÇALVES, 48, doutora em filosofia pela USP, é professora de estética e teoria da arte na Universidade Federal da Bahia.


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