Folha de S. Paulo


Três poemas de João Bandeira

SOBRE O TEXTO Estes poemas fazem parte de "Quem Quando Queira", a sair pela Cosac Naify. O livro será lançado no dia 9 de novembro, com leituras e sessão de autógrafos, a partir das 19h30, no Espaço Cult, em São Paulo.

João Pinheiro

1.

Naquela cidade, bondes despreocupados, charretes

macias e minicoopers multicoloridos vão e vêm, levando

quem quando queira pelas colinas cheias de casas

boas de morar, de onde se avista a baía e tanta gente

andando à toa ou em bicicletas de todos os tipos

por calçadas largas e gramados seguindo a beira do mar

.

Presídio lá significa um parque enorme em que se pode

viver vizinho de Walt Disney na vila militar desmobilizada

e ali ao lado no velho forte sob a ponte vermelha Kim Novak

sã e salva do suicídio cuida do sono daqueles que vêm

no fim de tarde tirar um cochilo numa das antigas

camas brancas de soldados, cotidianamente refeitas

.

Nas praças, novos hippies explicam a yuppies imaturos

como se safar de insônia crônica ou de terremotos

financeiros, procurando a fortuna pelo bairro chinês

e fazendo tudo caber na memória ou numa bolsa pequena

que se consegue num pulo ao museu Henry Miller em Big Sur

onde o homem da livraria distribui fatias do pão que ele fez

.

A motorista do trólebus nunca mais tem pressa e vai

perguntando aos passageiros como eles têm passado

se estão bem acomodados, e todos concordam com ela

que o melhor trajeto é o que for mais longo e mais bonito

enquanto minha mãe ensina cantando o caminho certo

para San Jose a toda bela Helena ou Lady Marion renovada

.

Em toda parte, há yerba buena para males da alma ou

do corpo, e limonada gelada é servida à vontade a qualquer

um que se lembre de uma tirada certeira de Mark Twain

e escreva no vidro da janela de um hotel com seu nome

ou escolha um verso longo de Ferlinghetti e piche num muro

de Ashbury, onde se vende a preço módico todo o rock do mundo

.

Passeatas pacíficas reivindicam diariamente o impossível

bem no centro da cidade e um Dr. King que sobreviveu arranja

sempre alguma Aretha e sua banda para entoar todo domingo

um superlullaby para sem-tetos resignados transexuais

indecisos negros injuriados e policiais sem desejo

por entre brisas de xixi e os perfis dos altos edifícios

*

2.

se a vida insiste em complicar
tua existência
dispensa que ela se explique

*

3.

errada ou correta
tonta ou refeita
o fino ou animal
a torto ou direita
distante ou na meta
absurda ou mais-que-concreta
uma outra ou a tal
com ou sem jeito
rima ou destom
bem ou caos -

nada

vale tudo

o que não

seja enfim

conseguir

arrancar

o som do seu
- sim

JOÃO BANDEIRA é poeta e curador.

JOÃO PINHEIRO, 34, é ilustrador, artista plástico e autor de histórias em quadrinhos, como "Burroughs" (Veneta).


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