Folha de S. Paulo


Se houver vida em Marte, ela será simples

RESUMO Há tempos Marte tem sido objeto de fantasias e falsas descobertas; o anúncio sobre existir água líquida ali reacendeu a especulação sobre a vida extraterrestre. Dada a baixa densidade atmosférica e a alta salinidade da água, o mais provável é que, se houver, a vida no planeta seja simples e não se encontre na superfície.

20.ago.2015/Efe
Autorretrato do veículo explorador Curiosity da Nasa em Marte
Autorretrato do veículo explorador Curiosity da Nasa em Marte

O planeta Marte anda ocupando as manchetes mais uma vez. Mês passado, foi a descoberta de água líquida fluindo na sua superfície. Agora, entrou em cartaz o novo filme de Riddley Scott, baseado no livro "Perdido em Marte" (Arqueiro), de Andy Weir, lotando cinemas pelo mundo afora.

Começando pela mitologia, Marte é o deus da guerra dos romanos, guardião dos soldados e dos fazendeiros. A conexão com a guerra veio dos egípcios e dos gregos, que o chamavam de Ares, um dos deuses do Olimpo, filho de Zeus e Hera. A cor avermelhada de Marte, plenamente visível a olho nu, inspira um certo temor, dando ao planeta um ar de mistério. Que tipo de ser poderia afinal habitar um mundo que aparenta ser coberto de sangue?

Até 1609, com a astronomia restrita a observações a olho nu, pouco de novo foi aprendido sobre Marte. Entre 1601 e 1609, o astrônomo alemão Johannes Kepler deduziu que a órbita do planeta tinha a forma de uma elipse, não de um círculo perfeito. Talvez a inspiração de Kepler tenha vindo do impulso guerreiro atribuído a Marte, refletido em sua órbita um tanto excêntrica. O astrônomo bem sabia que sua visão fazia ruir milênios de conhecimento, forçando uma nova atribuição de imperfeição aos desenhos celestes.

Aproveitando a aproximação de Marte durante um período de ótima visibilidade, em 1877, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli observou detalhes do relevo marciano, que descreveu usando a palavra italiana "canali". Mesmo que Schiaparelli se referisse às longas depressões e sulcos na superfície, alguns acreditaram que ele houvesse descoberto canais cruzando a superfície do planeta em padrões extremamente regulares.

Na imaginação popular, os canais logo se transformaram em vias artificiais, cavadas por uma antiga e sábia civilização dirigindo água dos polos aos centros urbanos das áreas equatoriais, castigadas por terríveis secas. Centenas de canais foram "observados" e batizados, mesmo se revelados apenas através de observações munidas de telescópios, recusando-se a aparecer em fotografias tiradas com os mesmos telescópios.

Astrônomos ofereceram explicações para essa situação um tanto peculiar, argumentando que técnicas fotográficas precisam de um longo período de exposição, sendo assim mais sensíveis às flutuações térmicas na atmosfera. Segundo eles, essas flutuações comprometeriam a qualidade das imagens fotográficas, apagando qualquer traço de existência dos canais. Algo semelhante ocorre quando viajamos em estradas com o asfalto aquecido pelo sol, e observamos imagens distorcidas à nossa frente.

GUERRA

Astrônomos de excelente reputação acreditaram na existência dos extensos canais marcianos. Entre eles, o milionário astrônomo amador Percival Lowell, que se fascinou com a possibilidade de vida inteligente em Marte. Em 1895, Lowell publicou um livro expondo suas ideias com grande convicção e autoridade. Usando sua fortuna pessoal, fundou um observatório em Flagstaff, no Estado de Arizona, inicialmente dedicado exclusivamente a observar a superfície de Marte. Não por coincidência, H. G. Wells publicou seu livro sobre uma invasão marciana, "A Guerra dos Mundos", em 1898.

No livro, H. G. Wells usa os marcianos como metáfora para o futuro da humanidade, dominada pelos grandes impérios do final do século 19. Da mesma forma que duas espécies inteligentes não podem coexistir, os impérios não poderiam evitar uma conflagração no futuro próximo –que veio, profeticamente, com a Primeira Guerra Mundial.

A ciência dos marcianos, forçados a abandonar o seu mundo, havia criado terríveis máquinas de destruição, um aparato bélico que fazia das nossas armas brinquedos de criança. Não foi nossa inteligência ou estratégia que derrotou os invasores, mas a natureza, no caso, por meio de micróbios.

Ainda mais dramático do que o livro de H. G. Wells foi o programa de rádio que ele inspirou. Produzido por Orson Welles em 1938, alertava os habitantes de Nova Jersey para uma invasão de marcianos. A série de transmissões, na forma de noticiários urgentes, causou verdadeiro pânico na população. As pessoas aceitaram passivamente a existência de uma civilização tecnologicamente avançada em Marte, aparentemente com péssimas intenções com relação à Terra.

O planeta ocupava já um lugar privilegiado na psique coletiva, um mundo habitado por seres mais avançados, cuja índole destruidora causaria o nosso fim.

As duas versões do livro de Wells para o cinema, a de 1953, dirigida por Byron Haskin, e a de 2005, dirigida por Steven Spielberg, adaptam a temática para a realidade social da época. A de 1953 ecoa a era atômica e a Guerra Fria. Os marcianos não têm outra motivação senão aniquilar os humanos. Na de 2005, o foco é a desintegração da família e o medo da ameaça terrorista. Os monstros que vêm de Marte são os monstros que carregamos em nós mesmos.

Durante as décadas de 1960 e 1970, as várias sondas espaciais Mariner e Viking provaram que os extensos "canais marcianos" não existem. Não existe, também, qualquer traço de civilização inteligente em Marte, no presente ou no passado. No entanto o planeta apresenta uma geologia extremamente rica, mesmo se desértica e com temperaturas muito baixas.

Vales e leitos de rios, vastos sistemas de cânions com mais de 4.000 km de extensão, enormes vulcões extintos –tudo indica que, no passado, Marte era um planeta muito diferente do que é hoje.

Com as sondas mais recentes, que pousaram em Marte e exploraram a região vizinha ao seu local de pouso, ficou claro que o planeta é mesmo um deserto gelado, semelhante a certas regiões do oeste americano. Seu tom avermelhado vem do acúmulo de poeira na superfície, formada por vários compostos de ferro e oxigênio. Essa poeira é levantada com frequência em terríveis tempestades, que podem ser vistas por telescópio.

Apesar de alguns alarmes falsos, a vida não foi detectada em Marte. Se existe vida lá, será simples, provavelmente bacteriana. Difícil que seja na superfície, dado que a atmosfera de Marte é muito fina, com menos de 1% da densidade da atmosfera terrestre. Sendo assim, a superfície é eficientemente esterilizada pela radiação ultravioleta oriunda do Sol.

FÉRIAS

Para piorar, gás carbônico –o que exalamos ao respirar– compõe 96% da atmosfera, tornando-a inviável para seres como nós. Com menos massa do que a Terra, em Marte seu peso seria em torno de 40% menor. Bom lugar para dietas, mas não para férias. Seria uma viagem de ao menos seis meses, sem garantia de volta.

Em setembro, cientistas anunciaram a presença de água líquida em encostas de Marte. Estrias escuras em terreno seco indicam presença de água, como ocorre no concreto quando molhado. A alta quantidade de vários tipos de sais na água faz com que permaneça líquida mesmo a baixas temperaturas, no caso em torno de -30ºC.

Infelizmente, essa alta salinidade também dificulta a existência de vida, semelhante ao que ocorre no mar Morto, em Israel e, mais dramaticamente, na lagoa de Don Juan, na Antártica, com salinidade 9,6 vezes mais elevada que no mar Morto. Mesmo que a possibilidade de a vida existir nessas condições seja baixa, só saberemos a verdade se tivermos a oportunidade de investigar a área diretamente.

Apesar de parecer uma decisão simples, enviar uma sonda para a área é um processo não só caro como complexo. O maior problema é a possibilidade de contaminação, isto é, da própria sonda levar consigo criaturas vivas, bactérias ou vírus. Certamente, numa questão dessa grandeza não queremos ser enganados, especialmente se a vida descoberta em Marte for idêntica à encontrada aqui.

A descoberta de vida extraterrestre seria uma das maiores notícias de todos os tempos. Contemplar a existência de outras formas de vida é contemplar a natureza de nossa própria existência. Até que ponto somos únicos e especiais?

Sabemos hoje que apenas em nossa galáxia existem em torno de 200 bilhões de estrelas e que a maioria delas tem planetas girando à sua volta. Devemos também incluir as luas, que são plataformas potenciais para a vida. Isso significa que há trilhões de mundos em nossa galáxia, cada um com sua composição e história.

Se as leis da física e da química são as mesmas nesses mundos –e sabemos que são– fica difícil imaginar que sejamos o único planeta com vida. A probabilidade de vida extraterrestre é alta, mesmo se limitarmos nossa busca à Via Láctea e a criaturas semelhantes a nós, com química baseada em carbono e dependendo de água líquida.

Astrônomos trabalhando nessa área especulam que teremos alguma indicação indireta de que a vida existe em outro planeta (fora do Sistema Solar) em duas ou três décadas. Essa detecção se dará através da análise da composição da atmosfera do planeta, que terá gases associados à presença de vida, como oxigênio e ozônio.

Vale lembrar, no entanto, que detectar vida não é o mesmo que detectar vida inteligente. Existe uma diferença enorme entre elas.

A vida existe na Terra há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Nos primeiros 3 bilhões, a vida aqui consistia em seres unicelulares. A complexidade dos dinossauros veio bem depois. Nós estamos aqui há só 200 mil anos, resultado de mutações genéticas e acidentes cósmicos. A vida não é como uma semente, que vai dar numa grande árvore. A existência de inteligência é a exceção, e não a regra.

Essa revelação da ciência moderna põe nosso medo dos marcianos num outro patamar, decididamente o da ficção científica. Voltando à obra de H. G. Wells, é bom tomá-la como metáfora dos perigos com que nossa espécie se defronta.

Numa era em que a automação cega e a distância entre nós e a vida em nosso planeta aumentam impunemente, vemos um comprometimento de nossa identidade como guardiões da natureza num universo profundamente hostil à vida. Pouco nos damos conta da nossa importância e raridade.

MARCELO GLEISER, 56, é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA, autor de "A Ilha do Conhecimento" (Record).


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