Folha de S. Paulo


O som experimental de Bemônio e Satanique

RESUMO Com participações especiais de Ava Rocha e de integrantes do grupo Metá Metá, o carioca Bemônio lança CD "Desgosto", que dá prosseguimento a uma linha sonora sombria e angustiante. De Brasília, o Satanique Samba Trio explora ritmos brasileiros, jazz e música de vanguarda. Em comum, um som do capeta.

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O trio carioca Bemônio
O trio carioca Bemônio

"Limpar as Vísceras", "Esfregar o Limão por Dentro e por Fora", "Deixar de Molho", "Picar em Tirinhas as Tripas e Demais Vísceras", "Temperar com Sal, Pimenta-do-Reino, Alho, Cebola, Cheiro-Verde, Louro e Hortelã", "Aquecer o Azeite e Adicionar o Toucinho", "Juntar o Sangue Coagulado", "Retirar o Bucho do Molho de Limão", "Costurar com Agulha e Linha" e, por fim, "Cozinhar em Fogo Brando durante 4 Horas". Essa é a receita proposta pelo trio carioca Bemônio no recém-lançado CD "Desgosto" (que pode ser ouvido em bemonio.bandcamp.com). Seguir todos os passos dessa cozinha experimental dura aproximadamente 50 minutos e é impossível passar incólume pelo processo.

Ouvir o Bemônio não é uma experiência agradável. Partindo de uma estética próxima da das trilhas sonoras de filme de terror, a música do trio é sombria, angustiante, violenta. Mesmo nos momentos de mais calmaria –sem tanta pressão, distorção, feedback, ritmos epiléticos e gritos–, paira sobre o ouvinte uma aura sinistra.

Bemônio é fruto da imaginação e dos sintetizadores sufocantes de Paulo Caetano. Sozinho, ele deu início a seus rituais ocultistas em julho de 2012 com o excelente "Vulgatum Clementinam", uma missa negra improvisada com sintetizadores. Prolífico, lançou dez álbuns e EPs desde então, incorporando à banda Gustavo Matos, na bateria, e Eduardo Manso, nas guitarras e sintetizadores.

Até agora, nenhum disco do trio teve tanta repercussão quanto "Santo", de 2013. Mixado por Steve Austin, da banda americana Today Is the Day, é repleto de participações e pode ser descrito como uma encruzilhada onde ocorrem diferentes encontros com o Bemônio. Tantas ondas distintas fazem com que "Santo" seja um ponto fora da curva na discografia do grupo.

O novo álbum, "Desgosto", também traz uma série de convidados, mas o resultado é muito mais próximo da liturgia do trio. "Esfregar o Limão por Dentro e por Fora" mostra como os convidados são incorporados mais organicamente desta vez. Ava Rocha, Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci, os três últimos do Metá Metá, amalgamam-se no mar de notas sustentadas, sem que a interferência do sax circular, do dedilhado ou das vozes entrecortadas em oposição ao clima ruim criado pelo trio original.

Bemônio faz música para ouvir com o corpo, para que se sintam na pele os açoites, para ficar fisicamente incomodado. A associação mais fácil é com o rock industrial de um Throbbling Gristle, com os experimentos radicais do Nurse with Wound ou com o noise japonês, especificamente com a agonia da série "Music for Bondage Performance", do Merzbow. A diferença é que o Bemônio não é só ruído abrasivo; muito da sua música parte do drone.

MICROTONS

Drone é uma música minimalista, caracterizada pela repetição, usando notas ou conjuntos de notas sustentadas, entonação justa e microtons. Drones podem conter a vastidão do oceano de som, mas eles também oferecem uma trama por meio da qual ele pode ser navegado.

O compositor minimalista americano La Monte Young "falou de usar suas peças de tom sustentado como forma de produzir ou manter um estado de espírito particular ao estimular o sistema nervoso continuamente com um determinado grupo de vibrações sonoras –criando assim uma constante a partir da qual a mente pode se mover, para frente ou para trás", escreve o crítico inglês Marcus Boon no artigo "The Eternal Drone".

"Drone é o veículo perfeito para expressar a alienação das noções tradicionais do sagrado –seja existencialmente, por meio de um culto ao 'sombrio', como faz o músico de vanguarda japonês Keiji Haino, vestido de preto com seu hurdy gurdy e pedais de efeitos, seja por meio de uma música que enfatiza mecanismos e dissonância ao imitar o ruído do maquinário da sociedade industrial", conclui Boon.

O drone tem origem mais antiga que os lofts de Nova York nos anos 60, onde La Monte Young encenava seu "Theatre of Eternal Music". Toda a música mântrica indiana se baseia em drones e, desde a Idade Média na Europa, há relatos do êxtase causado pela combinação das luzes multicoloridas dos vitrais com os sons produzidos pelos órgãos nas igrejas. Há nessa memória sonora cultural uma relação direta com o som do trio.

Em 2013, Paulo Caetano disse ao jornalista Bruno Natal que chegou à sonoridade do Bemônio por meio da missa católica e da trilha sonora do filme "A Profecia" (1976). "Quando ouvia coros ou cantos gregorianos numa missa, associados às imagens religiosas e ao 'reverb' que a acústica da igreja traz, tinha arrepios, ficava angustiado e não obtinha a mesma calma que um católico fervoroso. Quando eu vi esse mesmo canto associado a um filme de terror, falei: é isso que vou fazer."

Por ser mais abstrata, a música causa horror mais intenso do que qualquer canção de louvor ao capeta, de Raul Seixas às bandas de metal. Até porque, na história, a música do diabo sempre se deu em oposição à música celestial, branca, europeia, domesticada pelos dogmas da escala temperada.

Ritmo e dissonância são as principais marcas do diabo. O ritmo e a dança dos negros foram as primeiras vítimas do preconceito musical no Brasil. Uma passagem muito interessante narrada no livro "Sons, Formas, Cores e Movimentos da Modernidade Atlântica: Europa, América e África" (Annablume, org. Júnia Ferreira Furtado), ilustra o temor que o batuque negro provocara ao viajante Nuno Marques Ferreira, autor do "Peregrino da América".

"'O estrondo dos tabaques, pandeiros, canzás, botijas e castanhetas' impediu que caísse no sono em uma das fazendas onde pernoitara a caminho de Minas. O calundu dos negros, com seus 'horríveis alaridos', representava para ele a 'confusão do inferno'. Avaliou que era o próprio demônio que mandava 'tocar em triunfo ao som destes infernais instrumentos', 'com tais estrondos', para mostrar sua vitória sobre o Deus cristãos nas terras coloniais. [...] Se o diabo se manifestava em som tão estridente, para Nuno Marques Pereira essa presença era também silêncio, pois era sintoma da ausência da verdadeira fé. Foi assim que, chamando o mestre dos calundus, explicou-lhe que em bom português, seguindo a etimologia do nome, calundu significava que se calam os dois: calo duo ("¦), vós e o diabo. Cala diabo, e calai vós o grande pecado que fazeis pelo pacto que tendes com o diabo."

Na música clássica nada representa melhor o espírito da dissonância que o trítono. O intervalo cuja extensão tem um semitom a menos do que a quinta perfeita, chamado de "diabolus in musica" (o demônio musical), é empregado para produzir estranhamento.

"Há muito tal intervalo produz vibrações incômodas nos ouvidos humanos", explica o crítico Alex Ross ao falar do escândalo causado pela abertura da ópera modernista "Salomé", de Richard Strauss. O trítono não é exclusivo da música clássica; foi usado por Leonard Bernstein em "Maria" e por Jimi Hendrix em "Purple Haze" –e se tornou uma marca do metal a partir da planta baixa desenhada pelo Black Sabbath.

A dissonância intensifica o drama, como escreve Nietzsche, em "O Nascimento da Tragédia": "O mito trágico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria. Difícil como é de se apreender, esse fenômeno primordial da arte dionisíaca só por um caminho direto torna-se singularmente inteligível e é imediatamente captado: no maravilhoso significado da dissonância musical".

A única banda que rivaliza com o Bemônio no campo do experimentalismo demoníaco brasileiro adota uma estética diferente. Trata-se do sexteto brasiliense Satanique Samba Trio.

Ao longo de sete discos, desde "Misantropicália" (2004) até o recente "Mó Bad" (2015), o Satanique mistura ritmos brasileiros com jazz e música de vanguarda (algumas amostras podem ser escutadas em sataniquesambatrio.com.br). Tudo com muita dissonância, veneno e maldade. Por mais que seja uma música difícil, é bem menos angustiante do que a produzida pelo trio carioca –até porque usa brilhantemente o recurso da ironia.

Nestas terras em franco processo de putrefação institucional, tomadas por Malafaias de todas as falanges, até que cai bem um culto na igreja do Bemônio ou pelo menos rir pra diabo com o som do Satanique Samba Trio.

GUILHERME WERNECK, 43, é jornalista, roteirista, garimpeiro de música e sócio da agência de comunicação Latitude Zero.


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