Folha de S. Paulo


Das gargalhadas à amizade

Dia 9 de março de 1989. Final da apresentação da "Cena da Origem", no teatro Mars, em São Paulo. Eu e Haroldo de Campos comentávamos as impressões da noite e, de repente, se aproxima de nós um homem alto, de voz poderosa, e se ajoelha aos nossos pés às gargalhadas. Essa foi a primeira vez que encontrei Fernando Zarif, do qual nunca mais me separei.

Dois dias depois, eu estava convidada para um jantar em sua casa. Cheguei e não havia nada. Apenas ele e todas as suas obras, livros, discos e ideias. Conversamos até o dia nascer.

Arquivo Pessoal
Bia Lessa e Fernando Zarif na abertura da exposição
Bia Lessa e Fernando Zarif na abertura da exposição "555" na galeria Millan, em São Paulo, em 1994

Dia 13 de março. Recebo um presente, um tríptico –"Deus Ouvindo, Deus Olhando, Deus Falando"– feito com folhas de papel de embrulho de coloração um pouco variada. Três quadros e nenhum bilhete.

Noites intermináveis de portas abertas para os amigos. Portas trancadas para os não amigos. Conheço cada canto daquele apartamento, cada gaveta, cada comida deixada pela Dora. Nossas noites eram ideias e desejos por realizações. Falas intermináveis, risadas sem fim. A regra era a noite não terminar. Líamos de Sócrates a Musil, passando por tudo que estivesse acontecendo, nos quatro cantos do planeta. Zarif era um mensageiro do mundo pra nós.

Sua pessoa e sua obra se confundem. Foi inusitado, revolucionário, irônico, inteligentíssimo em tudo que fez. Próprio, único, irremediavelmente diferente de todos. De seu cabelo aos seus anéis, suas roupas, sua elegância constante, delicadeza sem fim.

Suas obras surgiam espontâneas, sem um externo a seu processo interno em constante ebulição. Trabalhava com o que estava a sua mão: lápis, garfo, cuspe, sangue, cabelo, papel, cigarro, cola, tinta, pincel, dedo, língua, fogo, cartas, bandeide. Cantava, pintava, esculpia, escrevia, tudo genialmente.

Em 1991, numa de suas idas ao Japão, me pediu para que eu ficasse em seu apartamento. Eu e Maria, minha filha, ficamos por lá, vivendo os livros, os discos, o carinho da Dora e os telefonemas infindáveis –às vezes, eram cinco horas de prosas jogadas ao ar. Do Japão, a notícia era que o país já não lhe interessava mais. As lojas de disco sem tantas novidades, os lugares, os mesmos de antes. Não saía do quarto do hotel –trancado, fazendo origamis!

Chegou com a mala cheia de obras –em guardanapos, papéis, rótulos de bebida e muitas dobraduras, além de uma grande novidade: um gravador acionado por comando de voz. O aparelho passou pela mão de todos nós, depois, despedaçado, virou parte de alguns trabalhos. Nele gravamos muitas canções –nunca mais ter encontrado essas fitas é uma de minhas tristezas. Nelas, temos um Zarif delicado e doce, à João Gilberto. Essas fitas fazem falta ao acervo de sua obra, que está organizado, ocupando toda uma casa no Jardim Paulistano, em São Paulo.

Minha filha Maria se tornou aos poucos sua filha, e a amizade e o amor deles não passavam por mim. Como um pai, acompanhou seus passos, suas viagens, esteve em todos os momentos importantes.

Não lembro uma estreia, um apuro, em que ele não estivesse do meu lado. Um telefonema e lá estava ele, na Alemanha, na França, em São Paulo, sempre com a preocupação de me fortalecer.

Quando fiz 40 anos, me deu uma obra, "O Calvário". Com toda a ironia do mundo, sua mensagem estava dada.

Sofri imensamente com seu processo de morte. Tentamos, eu e Maria, com todas as pressões possíveis, arredá-lo do desejo de não se conter. Mas ele foi sempre firmíssimo, sabia o que queria e como queria. Hoje admiro demais sua convicção e firmeza.

Solitário em sua vida repleta de amigos, frutas e geladeira cheia. Muito reservado em seus sofrimentos, fera nas brigas e ágil na escolha de seus amigos.

Fugir da UTI e ir direto tomar um dry martini já era uma constante. Fazia sem dificuldade, para minha infinita angústia. Sua irreverência e força eram evidentes em sua vida e trabalho. Não havia separação entre eles. Uma coisa só.

Ele continua em minha vida. Minha segunda filha, Clara, foi sua afilhada, sem que eu tivesse tido tempo nem de pensar em escolhê-lo como padrinho, antes mesmo que eu pudesse admirá-la em meus braços, lá estava ele, ao meu lado, dizendo: "Minha afilhada".

Ela sempre me diz: "Não acredito ainda que ele morreu".

E parece mesmo que ele não morreu. Pelas paredes e cantos de minha casa ele se faz de fato presente. Sua obra e sua pessoa estão irremediavelmente juntos –para nossa alegria.

A cada viagem que faço, em cada museu que entro, penso: Zarif deveria estar aqui ao lado de Duchamp.

Nota: A mostra "Antes de Começar Termino', na Luciana Brito Galeria, expõe, até 12/11, 40 obras de Fernando Zarif (1960-2010).

BIA LESSA, 57, é cenógrafa e diretora.


Endereço da página: