Folha de S. Paulo


Leia trecho inédito de "Os Pescadores", romance que concorre ao Booker Prize

SOBRE O TEXTO Com "Os Pescadores", seu primeiro romance, o autor nigeriano concorre ao Man Booker Prize, um dos principais da língua inglesa, cujo vencedor será anunciado em 13/10. O livro, a sair pela Globo, tem publicação prevista para a segunda quinzena do mês que vem.

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo,, Brasil, 30-09-2015 16h05:Reproducao de pintura de Deborah Paiva para ilustrar materia IMAGINACAO (Foto Eduardo Knapp/Folhapress.MERCADO). Cod do Fotografo: 0716

Nós nos tornamos pescadores quando Ikenna voltou da escola na semana seguinte entusiasmado com a nova ideia. Era final de janeiro, pois lembro que era o aniversário de catorze anos de Boja, dia 18 de janeiro de 1996, e comemoramos naquele fim de semana com um bolo feito em casa e refrigerantes na hora do jantar. O aniversário dele marcava o "mês da mesma idade", o período de um mês em que ele tinha temporariamente a mesma idade de Ikenna, nascido um ano antes, em 10 de fevereiro.

Um colega de classe de Ikenna, Solomon, havia falado sobre os prazeres da pesca. Ikenna contou que Solomon definia o esporte como uma experiência emocionante e também lucrativa, já que podia vender parte dos peixes e ganhar um pouco de dinheiro. Ikenna ficou ainda mais entusiasmado porque a ideia abria a possibilidade de ressuscitar Yoyodon, o peixe.

O aquário, que um dia estivera perto da televisão, abrigava um acará incrivelmente bonito que parecia uma colônia de cores –marrom, violeta, púrpura e até verde-claro. O Pai deu ao peixe o nome de Yoyodon quando Obembe disse uma palavra com um som semelhante ao tentar pronunciar Symphysodon: o nome da espécie do peixe. O Pai deu um fim ao aquário quando Ikenna e Boja, num gesto compassivo para livrar o peixe da "água suja" em que nadava, a trocaram por água limpa e potável. Quando voltaram, perceberam que o peixe não conseguia mais levantar do leito de pedregulhos e corais brilhantes do fundo.

Assim que Solomon falou sobre pesca com Ikenna, nosso irmão jurou que iria capturar um novo Yoyodon. Ele foi com Boja até a casa de Solomon no dia seguinte e voltou entusiasmado falando sobre esse e aquele peixe. Eles compraram dois carretéis de linha de pesca e anzóis num lugar que Solomon indicou. No dia seguinte, Ikenna os colocou em cima da mesa que ficava no quarto deles e explicou como eram usados. As linhas vinham enroladas em longos bastões de madeira com uma corda amarrada na ponta. Anzóis de ferro eram atados na ponta da corda, e era nesses ganchos, disse Ikenna, que se prendiam as iscas –minhocas, baratas, restos de comida, o que fosse– para atrair e capturar os peixes. Do dia seguinte em diante, durante uma semana inteira, eles saíam todos os dias da escola e percorriam o longo e tortuoso caminho até o rio Omi-Ala no fim do nosso bairro para pescar, passando por uma clareira atrás da nossa casa, que fedia na estação das chuvas e servia para abrigar uma família de porcos. Eles iam com Solomon e outros garotos da rua e voltavam com latas cheias de peixes. No começo, não deixavam Obembe e eu irmos junto, apesar de termos ficado muito interessados quando vimos os peixes pequenos e coloridos que apanhavam. Então, um dia Ikenna disse para mim e Obembe:

–Venham comigo, vamos transformar vocês em pescadores!

E lá fomos nós.

Começamos a ir até o rio todos os dias depois da escola, junto de outras crianças da rua, numa procissão liderada por Solomon, Ikenna e Boja. Os três costumavam levar as linhas de pesca escondidas em trapos ou em velhas "wrappas". Os demais –Kayode, Igbafe, Tobi, Obembe e eu–levavam coisas que variavam de mochilas com trajes de pesca até sacos de nylon com minhocas e baratas mortas que usávamos como iscas, e também umas latas de bebida vazias onde guardávamos os peixes e girinos que apanhávamos. Andávamos juntos até o rio, passando no meio de arbustos cheios de espinhos que arranhavam nossas pernas descobertas e deixavam vergões brancos na pele. Os vergões que os espinhos deixavam em nós combinavam com o estranho termo botânico que denomina a vegetação predominante na região, "esan", palavra que em iorubá pode significar retribuição ou vingança. Percorríamos essa trilha em fila indiana e, assim que passávamos por essa vegetação, corríamos para o rio como loucos.

Os mais velhos, Solomon, Ikenna e Boja, costumavam se trocar e usar seus trajes sujos de pescaria. Eles ficavam em pé na margem do rio, segurando as linhas acima da água, os anzóis abaixo na superfície. Apesar de pescarem como homens experientes, que conheciam o rio desde o berço, em geral só conseguiam fisgar pequenos lambaris, ou garoupas que eram muito mais difíceis de pegar e, de vez em quando, algumas tilápias.

O restante de nós só conseguia pegar girinos com as latas de bebida vazias. Eu adorava os girinos, seus corpos esguios e cabeças exageradas, que pareciam quase disformes e eram como uma versão de baleias em miniatura. Por isso eu os observava, admirado, enquanto voltavam embaixo da água, e meus dedos ficavam pretos de tanto esfregar a gosma cinzenta que recobria a pele deles.

Às vezes pegávamos conchas de coral ou cascas vazias de artrópodes mortos havia muito tempo. Levávamos caracóis redondos em forma de antigos fósseis, os dentes de algum monstro –que viemos a acreditar pertencer a uma era distante, porque Boja argumentou com veemência que eram de um dinossauro e os levou para casa–, restos do couro de uma cobra que trocou de pele na margem do rio e qualquer outra coisa interessante que encontrássemos.

Só uma vez conseguimos pegar um peixe suficientemente grande para vender, e sempre me lembro desse dia. Solomon pescou um peixe gigantesco, maior que todos os que já tínhamos visto no Omi-Ala. Então, Ikenna e Solomon foram até o mercado ali perto e voltaram ao rio pouco mais de meia hora depois com quinze nairas. Meus irmãos e eu fomos para casa com seis nairas, que era a nossa parte da venda, com uma alegria transbordante. Começamos a pescar mais desde então, ficando acordados até tarde da noite para conversar sobre a experiência.

Nossas pescarias eram organizadas com muito zelo, como se uma fiel plateia se reunisse diariamente na margem do rio para nos observar e aplaudir. Não ligávamos para o cheiro da água cheia de juncos, para os insetos voadores que se reuniam em enxames ao redor das margens todas as tardes, nem para a nauseante visão das algas e folhas que formavam um mapa das nações problemáticas do mundo na outra margem do rio, onde árvores varicosas mergulhavam na água. Íamos todos os dias com latas enferrujadas, insetos mortos e minhocas derretendo, vestidos praticamente de trapos e roupas velhas. Vivíamos muitas alegrias nessas pescarias, apesar das dificuldades e do pouco retorno. Hoje, quando olho para trás, como tenho feito com mais frequência agora que tenho meus filhos, percebo que foi durante uma dessas idas ao rio que nossas vidas e o nosso mundo mudaram. Pois foi nele que o tempo começou a ter importância, foi naquele rio que nos tornamos pescadores.

CHIGOZIE OBIOMA, 29, escritor nigeriano, é professor de literatura na Universidade de Nebraska-Lincoln

CLAUDIO CARINA é jornalista e tradutor

DEBORAH PAIVA, 65, é artista plástica


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