Folha de S. Paulo


Paris celebra as imagens artísticas da prostituição em mostra no Orsay

Quando o sol se punha na Paris do século 19 e os acendedores de lampiões percorriam as ruas acendendo as lâmpadas a gás, chegava a "hora do absinto". Os elegantes flâneurs que durante o dia percorriam os grandes bulevares criados por Haussmann desapareciam, e eram substituídos pelas damas da noite.

Dos desvãos mais escuros da capital francesa, milhares de mulheres usando roupas de cores brilhantes emergiam como mariposas para flertar e procurar clientes nos terraços dos cafés ou em cabarés como o Folies Bergère e o Moulin Rouge.

À medida que florescia a prostituição em Paris, os artistas mais celebrados da cidade se esforçavam para capturar um empolgante e moderno fenômeno social, salpicado de uma dose de pecado e escândalo, e com um toque de obscenidade ao modo de Rabelais.

Bertrand Guay/AFP
Visitante diante da obra
Visitante diante da obra "Rolla", de Auguste Chabaud na exposição do Museu d'Orsay

As naturezas mortas e as paisagens bucólicas desapareceram como tema, e foram substituídas por cocotes e cortesãs. Agora, o Musée d'Orsay está abrindo o que define como primeira grande mostra sobre a representação artística da prostituição na Paris do século 19.

O título da mostra –"Esplendores e Misérias: Imagens da Prostituição, 1850-1910"– foi tomado de empréstimo a "Splendeurs et Misères des Courtisanes", romance do ciclo "A Comédia Humana", de Honoré de Balzac. O foco da exposição é o trabalho de pintores, artistas e fotógrafos que, com uma mistura de fascinação e crescente repulsa, capturaram esse lado mais sombrio e decadente da Cidade Luz, no período entre o Segundo Império e a Belle Époque.

As imagens que eles deixaram romantizam a depravação da era. "Todo grande artista do período tratou do tema da prostituição, de uma maneira ou de outra", disse Richard Thomson, professor da cátedra Watson Gordon de belas artes no Edinburgh Colege of Art (ECA) e um dos curadores da exposição, ao "Observer". "Era um tema que os interessava. Por quê? A resposta óbvia é porque eram homens, mas outra razão era que a prostituição estava ligada à ideia de modernidade. Pessoas tinham se mudado para a cidade, o que em si já era um conceito novo, e nela a severidade moral das aldeias desaparecia. A cidade era fluida, e isso empolgava os artistas."

Como escreveu Gustave Flaubert ao amigo e político Ernest Chevalier, em junho de 1842, "o que parece ser mais bonito em Paris é o bulevar... na hora em que as lâmpadas a gás brilham nos espelhos, as facas tilintam contra as mesas de mármore, caminho por lá, pacificamente, envolto na fumaça de meu charuto e contemplando as mulheres que passam. É aqui que a prostituição é exibida. É aqui que brilham os olhos".

"O que é arte? Prostituição", declarou Charles Baudelaire em seus "Jornaux Intimes". A exposição tenta enquadrar a prostituição do século 19 e começo do século 20 na França à moldura social de uma era na qual uma virada demográfica levou muitos moradores do campo para a cidade e as autoridades encaravam a prostituição como mal necessário para conter a natureza exuberante da libido masculina. Por séculos, os reis e aristocratas franceses mantiveram amantes e cortesãs, mas em Paris na segunda metade do século 19 o negócio do sexo à venda foi democratizado, invadiu os espaços públicos e prosperou.

A exposição começa nas ruas, as alamedas e bulevares nas quais durante o dia as cenas eram ambíguas e os visitantes eram encorajados a perceber os sinais reveladores que distinguiam uma prostituta de uma "mulher honesta": um olhar ousado, uma barra de saia erguida, uma mulher bebendo sozinha em um bar. "Há códigos que nos oferecem pistas", disse Thomson. "Mas durante o dia era complicado tentar distinguir quem era e quem não. A coisa do 'ela é ou não é' era a grande questão da era."

O segundo estágio da exposição trata da Maison Clos [casa fechada]. Na segunda metade do século 19, as prostitutas –que se registravam junto à polícia local e eram obrigadas a passar por exames médicos regulares– trabalhavam em cerca de 200 bordéis e maisons closes legalizados.

Muitos milhares de outras mulheres trabalhavam ilegalmente nas ruas. A atividade delas tinha por centro os bares e cafés retratados de forma tão colorida por Henri de Toulouse-Lautrec, nos quais uma mulher "decente" jamais entraria sem companhia masculina. Os terraços dos cafés, visíveis das ruas e de dentro dessas casas, eram o domínio das mulheres em busca de clientes.

Em uma sala cuja entrada é vedada por cortinas vermelhas, na exposição, algumas fotos dos primórdios da era da fotografia capturam a devassidão: há mulheres em poses sugestivas e cenas pornográficas de sexo heterossexual e homossexual nas maisons closes.

Em seguida, a exposição adentra o boudoir. Se as prostitutas clandestinas, que muitas vezes precisavam suplementar sua renda cobrando por sexo, eram o degrau mais baixo da pirâmide, as jovens "cortesãs", muitas vezes atrizes ou cantoras, ocupavam o degrau mais alto. Mantidas por protetores aristocráticos, poderosos ou importantes no governo, como um sinal de riqueza e virilidade, essas demi-mondaines eram tema de fascínio para a classe alta, que as contemplava com desdém mas as seguia como referência de moda e bom gosto. Nana, a personagem de Émile Zola, é uma prostituta que ascende meteoricamente e se torna cocote de alta classe, arruinando as vidas de todos que se apaixonam por ela, e por fim morre de varíola.

A exposição também inclui "Olympia", de Édouard Manet, nu que chocou e indignou Paris em 1865 não porque a modelo estivesse sem roupa mas porque seu olhar era desafiador e diversos detalhes nada sutis –por exemplo a orquídea no cabelo– a identificavam como prostituta. (Na verdade, a modelo foi a pintora Victorine Meurent, amiga de Manet.) A obra, condenada como imoral e vulgar, se tornou um marco na história da arte.

A porção final da mostra é o retrato duro e muitas vezes cruel das prostitutas pelos artistas do começo do século 20, entre os quais Picasso. "Quando você chega à sala final da mostra e ao começo do século 20, a atitude dos artistas mudou. As pinturas são mais caricaturais, até mesmo malévolas, refletindo uma sociedade misógina", disse Thomson.

"Não sabemos bem o motivo, mas na época a França tinha graves problemas, entre os quais baixa natalidade e questões sobre a possível degeneração do país. Havia níveis elevados de alcoolismo e sífilis, e as pessoas estavam com medo".

Ele disse que as cortesãs estavam a um mundo de distância da miséria das ruas. "As prostitutas de alta classe viviam de modo muito, muito substancial. Não eram pagas em nada tão vulgar quanto simples dinheiro, mas com braceletes de diamantes e cavalos de corrida."

Para a maioria das prostitutas retratadas, porém, os quadros romantizavam a esqualidez de circunstâncias que levavam mulheres mal pagas a vender sexo, e transformavam sua miséria em uma celebração da arte e do talento pessoal.

"A história social era horrível", disse Thomson. "Mas os quadros são fantásticos."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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