Folha de S. Paulo


Deus salve a América

"Deus os abençoe."

Com essas palavras, o presidente Barack Obama terminou seu discurso para defender o acordo entre a República Islâmica do Irã e seis potências mundiais, concluído em junho. Da mesma forma, Obama costuma terminar todos os seus pronunciamentos.

Ninguém aqui parece estranhar a menção a Deus feita por um presidente laico, de uma democracia onde a separação entre Estado e religião é firmemente sustentada pela Suprema Corte –embora não conste explicitamente na Constituição. Afinal, Deus está por toda parte nos Estados Unidos. Não apenas nas consciências e ditos populares mas institucionalmente gravado nas paredes dos tribunais, dos monumentos e do Congresso Nacional. Ele está presente até nas cédulas do dólar, onde a frase "In God we Trust (em Deus confiamos) flutua acima de símbolos do poder terreno, como a Casa Branca.

Em época de campanha presidencial, a sensação de país ultrarreligioso cresce, inflamada principalmente pelo Partido Republicano. Neste início precoce da disputa, os pré-candidatos republicanos à Casa Branca têm brigado para mostrar quem é mais crente, mais temente e mais intolerante com quem não tem fé em Deus.

Nem o papa Francisco, recebido como estrela pop em sua primeira visita aos EUA, escapou. Suas ideias são progressistas demais para os cristãos conservadores do Partido Republicano, e alguns ensaiaram um boicote ao pronunciamento do pontífice no Congresso.

SEM FÉ E SEM CANDIDATO

Mesmo os políticos considerados moderados e pragmáticos se sentem compelidos a flertar com o lado religioso da nação. O melhor exemplo é o senador Bernie Sanders, pré-candidato do Partido Democrata. Judeu não praticante, Sanders compra briga com o establishment econômico mas não com o status quo religioso. Há poucos dias, levou sua plataforma de justiça social a uma plateia de evangélicos e citou um trecho da Bíblia, algo inescapável para quem sonha com a Casa Branca.

Scott Eisen - 19.set.15/Getty Images/AFP
O democrata Bernie Sanders em convenção do partido em New Hampshire
O democrata Bernie Sanders em convenção do partido em New Hampshire

Nenhum candidato desafia a incansável patrulha moralista e religiosa, mesmo diante de números que indicam um país com menos crentes do que anos atrás. A porcentagem de americanos que se dizem sem religião subiu de 16,1% para 22,8% entre 2007 e 2014, segundo pesquisa do Centro Pew.

À medida em que a chamada "geração do milênio" entra na vida adulta, muitos de seus integrantes se afastam da educação religiosa recebida em casa. A pesquisa mostra que 36% dos americanos entre 18 e 24 anos não têm qualquer afiliação religiosa.

CAPITALISMO CRISTÃO

O novo livro do historiador Kevin M. Kruse mostra que a origem de boa parte dos símbolos religiosos do cotidiano americano é mais pragmática e recente do que se pensa.

Em "One Nation under God" (uma nação sob Deus), Kruse lembra que a ideia dos EUA como um país cristão foi promovida nas décadas de 1930 e 40 por barões da indústria para combater o New Deal, o pacote implementado pelo governo para recuperar a economia atingida pela Grande Depressão. Sob o patrocínio desse lobby, emergiu um clero conservador pregando a livre iniciativa como um valor cristão.

De acordo com Kruse, o lobby em defesa desta confluência entre cristandade e capitalismo foi tão bem sucedido que levou o governo a introduzir, na década de 50, alguns elementos religiosos que viraram marcas da vida nacional. Entre elas, a impressão nas notas de dólar da frase "Em Deus confiamos", em 1957, e a introdução de Deus no juramento à bandeira, repetido em quase todas as escolas.

TURISMO INTELECTUAL

Mas no país circulam ideias para todos os gostos, não só as religiosas. Para quem pode encarar a alta do dólar, planeja visitar a capital dos EUA e fala inglês, uma recomendação é conferir a intensa programação dos centros de estudos e museus de Washington. Todos promovem debates sobre uma infinidade de temas, com especialistas de ponta. De dar inveja.

Na semana que passou, o turista curioso poderia assistir a discussões sobre o contexto histórico das relações entre EUA e China, no Brookings Institution, sobre o impacto das mudanças climáticas nas populações pobres, na Heritage Foundation, e sobre os desafios do papa Francisco, no Centro para o Progresso Americano. Todos abertos ao público e de graça.

MARCELO NINIO, 49, é correspondente da Folha em Washington.


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