Folha de S. Paulo


O universo literário no âmago da obra de Visniec

Desde 2012, quando as peças de Matéi Visniec passaram a ser publicadas no país, a dramaturgia do autor romeno espalhou-se como rastilho de pólvora aceso nos palcos brasileiros. Já tivemos montagens ousadas, como a versão de "Por Que Hécuba" encenada por Márcio Meirelles no Teatro Vila Velha, em Salvador, que combinava o coro sóbrio da tragédia grega com os ritmos frenéticos do Carnaval baiano. E outras mais convencionais, como "A Volta para Casa", dirigida com correção por Regina Duarte, embora o elenco não tenha atingido o relevo dramático necessário.

Primeira direção conjunta de Clara Carvalho e Denise Weinberg, "A Máquina Tchékhov", em cartaz até 25/10 no Instituto Cultural Capobianco, contém elementos recorrentes na obra de Visniec: o pastiche, a paródia e a utilização sintomática em suas peças de personalidades históricas –Cioran, Meyerhold– interagindo com entes ficcionais, como Godot.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Atores Dinah Feldman (esq.), Fernando Rocha, Brian Penido, Emmilio Moreira (chapéu),Mariana Muniz, Fernando Poli, Ariana Sliva e Michel Waiman (sem camisa), de
Atores Dinah Feldman (esq.), Fernando Rocha, Brian Penido, Emmilio Moreira (chapéu),Mariana Muniz, Fernando Poli, Ariana Sliva e Michel Waiman (sem camisa), de "A Máquina Tchékhov"

Neste enredo, em que o autor russo Anton Tchékhov (1860-1904) confronta-se, após a morte, com seus personagens emblemáticos, como Tio Vânia e as três irmãs, as teias de referências cruzadas e intertextualidade são extensas. Se as analogias mais óbvias nos levam ao "Hamlet Máquina", de Heiner Müller (1929-95), ou a "Seis Personagens à Procura um Autor", de Pirandello (1867-1936), são evidentes também procedimentos muito próximos aos utilizados pelo escritor catalão Enrique Vila-Matas, outro criador que usualmente implode as fronteiras entre os fatos históricos e os ficcionais.

O universo literário está no âmago da obra de Visniec. Nota-se em seus dramas a ambição latente de que sejam lidos, caminhando paralelamente à necessidade de serem encenados. Em nota sobre "A Máquina Tchékhov", o autor afirma tratar-se de uma obra em que "a abordagem biográfica alia-se ao desejo de propor um jogo literário". Em outro texto sobre a peça, revela o "esforço quase desesperado [...] de compreender algo do mistério da escrita".

O que fazem as diretoras diante desse cenário? Elaboram uma montagem que vivifica o texto em cena. As nuances de elocução de cada ator estão precisas e bem afinadas. Carvalho e Weinberg foram felizes em iniciar a encenação pela sétima cena da peça, quando os personagens Astrov, Tchebutikin e Lvov questionam, diante do corpo de Tchékhov, se ele não seria um escritor menor, entre os grandes autores russos, ao que este se levanta do leito e participa do debate. Uma vez que as seis primeiras cenas do texto têm tintas realistas, essa inversão já escancara de imediato ao espectador que os códigos instaurados no espetáculo pertencerão ao domínio do teatro do absurdo. Essa transposição catalisa toda a substância nonsense do texto, que sai da boca dos atores com a fluência de quem foi capaz de compreender com perfeição o universo ficcional retratado.

A representação visual, por sua vez, não deixa nada a desejar. O desenho de luz de Wagner Pinto cria uma ambientação fúnebre para o evento extraordinário, no qual a penumbra é trespassada por feixes luminosos. O figurino de Chris Aizner reforça essa dramaticidade, com predominância de pretos e cortes fieis à modelagem russa do final do século 19.

O espaço da sala subterrânea do instituto é utilizado de maneira criativa, sublinhando pela verticalidade a dicotomia entre os mundos superior e inferior, como sugerem a cena com a água derramada na escada helicoidal, ou a passagem com as bolhas de sabão caindo do teto. Essa dicotomia, aliás, perpassa toda a peça, presente no conflito entre o Tchékhov médico e o doente, entre o personagem histórico e os ficcionais, entre a realidade e a utopia.

Parte do elenco movimenta-se constantemente pelas bordas do palco, de modo vagaroso, promovendo uma distensão do tempo dramático e dando certa unidade às cenas fragmentárias que ocorrem no centro. Enfim, no momento derradeiro, os personagens tchekhovianos, todos juntos, marcham em sincronia, ao ritmo de uma locomotiva a vapor rumo ao desconhecido.

MARCIO AQUILES, 36, é coordenador de projetos internacionais da SP Escola de Teatro, crítico teatral e autor de "Tipologias Ficcionais e Linguísticas" (Giostri).


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