Folha de S. Paulo


Cecilia Bartoli maximiza qualidades e dribla limitações em seu canto

Gorro de pele na capa e, no encarte, em meio à neve, trenós, palácios e gravuras, uma foto para lá de sugestiva do gabinete erótico de Catarina, a Grande: em "St. Petersburg" [Universal, R$ 29,90], seu mais recente álbum, a diva Cecilia Bartoli visita a Rússia do século 18.

Nada mais típico da mezzo-soprano italiana que fuçar um repertório ao qual os próprios russos não dão atenção. Os livros de história costumam citar Mikhail Glinka (1804-57) como o "pai fundador" da música do país –e, consequentemente, marcar como evento inicial da ópera por lá a estreia de "Uma Vida pelo Tsar", desse compositor, em 1836. Não apenas no exterior, mas na própria Rússia, o que se ouve e se executa é a música de Glinka em diante.

Dirk Wawm - 27.set.2007/AFP
A mezzo-soprano Cecilia Bartoli em Bruxelas em 2007
A mezzo-soprano Cecilia Bartoli em Bruxelas em 2007

Claro que a realidade é um pouco mais complexa e, assim como o "pai fundador" da literatura russa, Aleksandr Púchkin (1799-1837), tem seus precursores no século 18, o mesmo acontece com Glinka.

A diferença é que, enquanto literatos como Karamzin, Lomonóssov e Derjávin são lidos, estudados e publicados, o mesmo não acontece com seus contemporâneos da música. Ouvindo o disco de Bartoli, é fácil entender o motivo.

Não, não tem nada a ver com razões estéticas. O "problema" é que, na Rússia (como, aliás, em todo o planeta), no século 18, ópera era sinônimo de ópera italiana –não importando a nacionalidade do compositor. Bartoli até se arrisca em russo, em duas árias de Hermann Raupach (1728-78). Mas o que ouvimos no disco, basicamente, é música da Itália escrita por compositores da Europa ocidental. Portanto, por maior que seja seu valor artístico, trata-se de uma produção de pouco interesse para a afirmação do "caráter nacional" através da arte.

Para que ela circule, fez-se necessária a curiosidade incansável de Bartoli, que mergulhou pessoalmente nos arquivos do teatro Mariinsky, em São Petersburgo, para emergir com joias de compositores como o alemão Raupach e os italianos Francesco Araia (1709-70), Domenico Dall'Oglio (1700-64), Luigi Madonis (1690-1767), Vincenzo Manfredini (1737-99) e Domenico Cimarosa (1749-1801).

Um fã mais atento de ópera talvez conheça o nome deste último, devido a "Il Matrimonio Segreto", que continua a ser encenada nos dias de hoje. Contudo, sua ária "Agitata in Tante Pene", da ópera "La Vergine del Sole", recebe aqui a primeira gravação mundial –como, de resto, todas as 11 faixas do álbum.

Acompanhada pelo grupo de instrumentos de época I Barocchisti, dirigido por Diego Fasolis, Bartoli interpreta as peças minuciosamente escolhidas com o misto de intensidade, expressividade e pirotecnias técnicas que vem fazendo dela um fenômeno de popularidade ao longo de mais de duas décadas de carreira.

Tendo recentemente completado meio século de vida, a cantora romana é um exemplo de sabedoria em maximizar as qualidades e driblar as limitações. A maior delas é o tamanho da voz: Bartoli jamais foi dotada de um vozeirão verdiano, capaz de competir com grandes orquestras e preencher as imensidões dos teatros.

Em vez de se intimidar com isso, ela transformou sua voz diminuta em um instrumento de altíssima precisão, capaz de realizar proezas técnicas de arrepiar os cabelos em meio às coloraturas e à ornamentação carregada da música do século 18 e início do 19. Essa voz se revelou ainda uma ótima amiga dos microfones e, para os padrões do mercado erudito, não seria exagero classificá-la como fenômeno de vendas, atingindo 10 milhões de cópias quando somadas suas realizações em áudio e vídeo.

Ainda mais expressivas na era de uma crise –para alguns, terminal– do mercado fonográfico, tais cifras foram atingidas sem jamais recorrer ao apelo comercial do "crossover". Pelo contrário: Bartoli emprega seu carisma para convencer plateias do mundo todo a explorar páginas totalmente desconhecidas do repertório. Em "St. Petersburg", a degustação se revela especialmente prazerosa.

IRINEU FRANCO PERPETUO, 44, é jornalista e tradutor, autor de "Alma Brasileira" (Livro Falante).


Endereço da página: