Folha de S. Paulo


Leia o conto "Perecíveis", de Elisa Band

SOBRE O TEXTO O conto aqui publicado dá título ao livro que a autora lança pela Lamparina Luminosa, na terça (25). O evento ocorre a partir das 18h30, na SP Escola de Teatro - Centro de Formação das Artes do Palco (praça Roosevelt, 210, São Paulo).

David Magila

Eu congelei bife pra você. Filé mignon. É mais mole, não precisa bater. Eu congelei costelas pra você. De boi e de porco. Eu congelei moelas, há quem goste. Se temperar direito, até as moelas ficam boas, gostosas como uma janela fechada em dia de chuva de granizo. E a janela é de vidro. Tem coração também. Vários. Eu devia ter congelado todos juntos, mas congelei um a um. Tinha salsinha, cebolinha e tempo, mas já acabou. Eu congelei fígado, um fígado inteiro, quase novo, pra gente poder usar à vontade, talvez em alguma ocasião especial. Tem também meia garrafa de Jack Daniels. Eu congelei um filho ou dois, perto da moela, lindos, quase tão lindos como um cachorro filhote que eu congelei e coloquei perto da sopa de ervilha, ou de algum feriado, ele poderia ser descongelado à temperatura ambiente pra ser usado com vinho branco, perto do mar.

Eu deixei alguns congelados prontos, feriados, férias, cebolinha, fim de semana, peito de frango, horas, minutos, cebola picada, segundos. É só descongelar, sempre à temperatura ambiente. Mas já está lá faz um tempo, eu não sei se se estragou.

Tem pastos aqui, pastos inteiros, bois, vacas e búfalos. Viagens pra Índia. Tem uma viagem pro pé do Himalaia que está quase vencendo.

Eu congelei bife, fígado, moelas, coração, filhos, feriados, caldo de carne, tempo, fósforos, calcinhas, animais exóticos, festas de aniversário com poucas pessoas, sanduíches, papel A4, salsão, um bar do centro de São Paulo, semanas inteiras, músculo, músicas variadas, em áudio, MP3 e alguns discos de vinil, transar, foder e fazer amor, cenouras cozidas, tacos de bilhar, alguns sonhos sem interpretação.

Eu congelei molho de tomate concentrado, sístoles e diástoles, beijos, ursos, febre, camisas, comidas (das longas), pintas, listras e pelos castanhos, bife à parmigiana, algum felino lânguido que pode acariciar, creme de leite, pequenos acidentes domésticos que terminam bem, costas da mão muito próximas, costelas de porco e de vaca, Leste Europeu, séries americanas, striptease e batatas, mas batatas não congelam muito bem.

ELISA BAND, 41, encenadora, performer e arte educadora, estreia na ficção com "Perecíveis" (Lamparina Luminosa).

DAVID MAGILA, 36, artista plástico, venceu o Prêmio Aquisição do 40º Salão de Ribeirão Preto deste ano, cuja exposição vai até 20/9.


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