Folha de S. Paulo


Como o Estado Islâmico estabeleceu uma burocracia do estupro

Um ano depois da conferência de cúpula para pôr fim à violência sexual em conflitos, convocada por Angelina Jolie e William Hague em Londres, o autoproclamado Estado Islâmico desenvolveu uma complexa burocracia para a escravidão sexual que desdenha abertamente a meta da conferência, a de pôr fim ao uso do estupro e da violência sexual em guerras.

O uso sistemático da violência sexual para aterrorizar, humilhar e subjugar comunidades em tempo de guerra é uma história sombria, e estima-se que entre 250 mil e 500 mil mulheres tenham sido estupradas em Ruanda durante o genocídio de 1994, e que entre 20 mil e 50 mil tenham sofrido estupros durante a guerra da Bósnia-Herzegóvina.

E o Estado Islâmico no Iraque e no Levante não é o único participante da guerra civil na Síria a recorrer ao estupro como arma –o estupro é endêmico nos centros de detenção operados pelo regime laico de Bashar al-Assad. Mas o que torna o uso do estupro pelo EI tão horripilante é sua tentativa de justificar, codificar e institucionalizar a prática apelando a justificativas ostensivamente religiosas para explicar esse crime de guerra.

Na revista online do movimento, "Dabiq", o EI afirma que, antes de sua tomada da cidade de Sinjar, onde predomina a minoria yazidi, atribuiu a seus "estudantes da sharia" a tarefa de determinar que "normas islâmicas" deveriam se aplicar à comunidade yazidi. A revista conclui que as mulheres yazidis podem ser escravizadas sob a lei islâmica, e que um quinto delas seriam transferidas à liderança do EI e as demais divididas entre os combatentes que participaram da conquista de Sinjar. O artigo prossegue reassegurando os leitores de que "muitas prescrições [legais islâmicas] são observadas, entre as quais a proibição de separar uma mulher de seus filhos pequenos".

Com base em sua interpretação, amplamente rejeitada, de textos islâmicos, o EI passou a sistematizar o estupro, agressão sexual e escravidão, incorporando a compra, venda e oferta de escravas ao sistema de recompensa de seus combatentes. O total estimado de mulheres yazidis cativas do EI é de 3,5 mil, e sobreviventes reportam ter sido interrogadas e em alguns casos despidas para triagem e classificação. Elas são classificadas de acordo com seus atrativos, rotuladas e transportadas pelo território do EI. São trocadas entre combatentes, e concedidas como prêmios pela liderança.

Ainda que a conferência de cúpula de Jolie-Hague tenha, ao que se sabe, treinado 100 soldados de forças de paz e 700 peshmerga [combatentes irregulares] curdos em "prevenção e resposta à violência sexual", muito mais precisa ser feito para lidar com as vítimas yazidis da escravidão sexual, psicológica e medicamente traumatizadas. (Também surgiram acusações na semana passada de que a refém norte-americana Kayla Mueller foi repetidamente estuprada por al-Baghdadi, o líder do EI.)

Comparados aos 5,2 milhões de libras gastos com a conferência, a Secretaria do Exterior britânica alocou um milhão de libras para apoiar ONGs de diversos países que trabalham nesse problema.

Além da cura e reintegração das mulheres yazidis a suas comunidades, a coalizão mundial contra o EI precisa começar a planejar um sistema de tribunais que responsabilize os perpetradores desses crimes de guerra depois que o EI for derrotado.

A comunidade yazidi está aterrorizada de voltar aos seus territórios depois de assistir aos sunitas locais participando dos crimes contra ela.

Um sistema robusto para determinar os culpados e responsabilizar os agressores será parte crucial da restauração da comunidade yazidi em seus lares.

O dr. Nussaibah Younis é especialista em assuntos do Oriente Médio e pesquisador residente no Centro Rafik Hariri do Conselho Atlântico, em Washington.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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