Folha de S. Paulo


Leia trecho de "O Livro dos Divãs", de Tamara Kamenszain

SOBRE O TEXTO "O Livro dos Divãs" (64 págs., R$ 28), do qual aqui apresentamos o início, será lançado pela 7Letras, com a presença da autora e dos tradutores no dia 9/9, às 21h, na Escola Letra Freudiana, no Rio. A poeta também participará da Bienal do Livro do Rio, que neste ano, de 3 a 13/9, homenageia a Argentina.

Patricia Brandstatter

Quando lhe digo que meu primeiro livro,

Deste Lado do Mediterrâneo,

vai aparecer na obra reunida

e que isso me dá vergonha,

ela como se tivesse ouvido mal me responde

que um mar separa o quarto da filha

do quarto da mãe.

É um livro naïf, selvagem

tenho medo que me delate,

insisto bancando a que também ouviu mal

embora tenha ficado claro que como num passe de mágica

já tínhamos mudado de assunto.

Ela, seu suposto saber, acha graça.

Diz: o sintoma é naïf, selvagem, o sintoma delata.

Será então que quando escrevo libero

as queixas, as falências, as taras

que aparecem e desaparecem no ritmo

de minhas sucessivas análises?

Ela não responde e isso deve querer dizer

que sempre existe outra linha de leitura, sempre existe outra.

.

Não se nomeavam os sintomas na minha família

diagnosticava-se com metáforas e é preciso reconhecer

que embora um discurso datado envelheça hoje a psicanálise

me obstino continuo procurando

por fadiga no divã associo livremente

outro nome para a asma.

Com seu pudor burguês meus pais haviam traduzido

doença por cansaço asma por fadiga

para que eu não me envergonhasse mas foi inútil

tive que retroceder até a intimidade daquele chiado

para encontrar aí meu próprio trabalho mensurável

no fundo da espirometria bem onde inspirar a gente inspira

mas onde para se inspirar

busca uma analista que certamente lhe dirá:

o mar é para ser nadado os asmáticos

se afogam num copo d'água

não chegam jamais ao quarto da mãe

dão braçadas inúteis enquanto o verdadeiro doente

é outro.

.

Eu tinha sonhado com meu primeiro analista

sentado a noite toda na sala da casa dos meus pais

será que eu tomo conta de vocês interpretara ele

e foi aí que o adotei

porque se de fato queria tomar conta de mim se escolhia ser

um vigia noturno para apaziguar a respiração da família

eu ia deixar rolar não me importava

trocar a mãe por um homem maternal.

Essa magia me curou da asma por uns anos

mas não me curou para sempre.

Meu segundo analista me assinalou o medo de viajar

decolar do círculo familiar ele disse

como se um oceano tivesse que por fim separar

o que continuava fixo no quarto ao lado.

Um círculo ou um gueto: no divã de hoje não me ocorre

uma associação menos óbvia do que essa

para dar mais uma volta

ao que não tem mais volta

Faço análise sem remédio para me sentir jovem

ou escrevo para remediar meus livros antigos?

Nem a mim interessa a resposta

se o inconsciente sobe na bicicleta do tempo

é porque sua data de validade deixa a repetição

de cabelos brancos. E o amor? E o amor?

Ela não abre a boca.

Seu suposto saber se afoga também

no copo d'água da minha solidão.

Não há asma mas nadar sozinha

é uma fadiga que se paga caro

eu já tinha nascido separada

no quarto ao lado da minha mãe

que trancou contra o meu o seu amor

esperando a cura de um bebê terminal

que não era eu.

.

Mas por sorte existe outra linha de leitura, sempre existe outra.

Quando saio satisfeita de uma sessão sento no bar em frente

e aí, sim, aí, sim, associo livremente

porque nem bem as pessoas sobem os decibéis das conversas

já sei que os guardanapos vão me servir

para ajustar umas palavras desbotadas

aos rigores da minha impressora quando eu voltar para casa.

Isso é legal

porque escrever se escreve para constatar

que não há inconsciente que aguente

o anseio de futuro a alegria de saber que embora tudo se repita

algo sempre vai mudar da casa ao bar e do bar

até a casa alguma novidade alguma letra miúda

que arraste outra vez os termos do contrato:

o divã proíbe à boca

o que não vale a pena dizer

enquanto libera para este livro novo

as expectativas do que-dirão.

.

Mas existe outra linha mais antiga de leitura, mais sábia.

Por exemplo, o poeta cubano José María Heredia

se perguntava em 1824

"Quando acabará o romance da minha vida

para que comece sua realidade.

Por que não acabo de despertar do meu sonho?"

Nessa época um pouco selvagem um pouco naïf

quando era preciso se virar sozinho

com as dores do resto diurno

o poeta pré-romântico passa a ser um pós

quando questiona os alcances do sonho

o romance da vida não o convence quer uma realidade

mas como fazer como fazer dois séculos depois

para não deixar que as asas do sonho

suspendam as pretensões da poesia?

TAMARA KAMENSZAIN, 68, poeta argentina, é autora de "O Gueto/O Eco da Minha Mãe" (7Letras).

CARLITO AZEVEDO, 54, é poeta e tradutor, autor de "Monodrama" (7Letras).

PALOMA VIDAL, 40, é escritora, tradutora e professora de teoria literária na Universidade Federal de São Paulo.

PATRÍCIA BRANDSTATTER, 32, é artista plástica.


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