Folha de S. Paulo


Se você se render, pode se divertir com novo filme de Godard

Jean-Luc Godard, que completou 84 anos em dezembro, ocupa um lugar especial no panteão do cinema moderno. Ele é um diabrete venerado como divindade, um teste de Rorschach, um para-raios, uma palavra combativa. Seu nome parece dividir o mundo entre céticos e adoradores, sem muito terreno entre uns e outros.

Figuras análogas são encontradas em outras áreas da arte do século 20: Andy Warhol, Bob Dylan, Ezra Pound. Elas têm em comum sua singularidade. Além disso, tendem a frustrar as distinções simples entre genialidade e enganação e costumam reunir exércitos de exegetas para o esforço possivelmente inútil de decifrar o que querem dizer.

Godard tem o hábito de mesclar gravidade e extravagância. Seu filme mais recente, um ensaio visual de 70 minutos em 3D intitulado "Adeus à Linguagem" revela o espírito de travessura formal e filosófica que caracteriza sua carreira mais recente. É enigmático e belo, uma confusão de fragmentos dispostos em contraponto a uma série de imagens evocativas, em cores brilhantes -de flores, barcos, ruas, corpos nus e o cão pertencente ao próprio Godard, vira-lata que rouba a cena e é identificado nos créditos como Roxy Miéville.

Divulgação
Cena de
Cena de "Adeus à Linguagem"

Há também a sugestão de uma trama, ou, melhor dizendo, um gesto na direção de um emaranhado de narrativas envolvendo intrigas políticas e adultério e fazendo menção a algumas das preocupações recorrentes do cineasta. Entre elas estão os pesadelos do europeu, com atenção especial ao imperialismo e ao Holocausto, a alienação da emoção humana sob o capitalismo e a natureza contraditória do próprio cinema, tanto como repositório quanto destruidor da memória. "Adeus à Linguagem" é dividido em capítulos sob os cabeçalhos "Natureza" e "Metáfora", sugerindo a divisão básica, fundamental do pensamento humano, entre o mundo que encontramos pela frente e os nomes que damos a seus fenômenos.

Nos anos 1960, quando Godard ganhou status de herói cultural internacional, uma de suas defensoras mais eloquentes na língua inglesa foi Susan Sontag. Hoje, quase 50 anos depois, ele pode estar lhe devolvendo o favor, fazendo filmes que promovem os argumentos do grande ensaio dela "Contra a Interpretação", no qual protestou contra a busca incansável e cansativa por sentido empreendida pela cultura e a crítica.

"No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte", ela concluiu, e "Adeus à Linguagem" premia justamente essa abordagem. Se você tentar decifrar o código ou mergulhar no filme até o âmago, especialmente quando o vê pela primeira vez, é provável que passe uma hora e dez minutos de frustração. Mas, se você se render, pode se divertir. É possível, até, que a terra trema.

A adesão de Godard ao vídeo digital -mais notavelmente em seu filme de 2001, "Elogio ao Amor"- ajudou a revelar o potencial estético latente desse formato. Ele faz algo semelhante com o 3D em "Adeus à Linguagem". Não se veem os efeitos especiais de praxe: Godard não tem interesse algum em captar a magia do voo ou fazer monstros parecerem reais. Em vez disso, é o mundo comum que aparece vívido e estranho, representado em uma série de esboços e composições de um artista dotado de um olhar excêntrico e certeiro.

Ele se deleita com os paradoxos do plano e do profundo, por exemplo: o modo como a superfície plana de um televisor que transmite um filme bidimensional antiquado modifica o volume de uma sala. E, a título de diversão, ele sobrepõe uma pessoa a outra, criando uma alucinação irritante. Em outro momento, filma uma mulher nua segurando uma travessa com um jarro e uma tigela de frutas, assim combinando dois gêneros importantes de pintura (o nu e a natureza-morta) para criar um momento de surrealismo naturalista.

Mas o filme não trata apenas do prazer. Boa parte dele é passado com um casal seminu, em estado de tédio pós-coito. Ela fala em charadas e provérbios filosóficos, cujas fontes podem ser inferidas na bibliografia críptica que aparece nos créditos finais, juntamente com uma lista de compositores. Ele está sentado na privada, defecando ruidosamente e opinando que essa ação representa a única forma verdadeira de igualdade humana. "Uma posição e uma função" que todos compartilhamos.

Mas vale observar que o homem e a mulher têm funções e posições distintas no filme. Não apenas ela permanece em pé enquanto ele faz o que precisa fazer, como a função dela é, em boa parte, ser exposta como objeto de contemplação e fantasia erótica. Ele também está nu, mas a câmera está muito mais interessada em olhar para ela.

Não poderíamos esperar que um velho deus do cinema aprendesse truques novos, e o corpo feminino já serviu muitas vezes a Godard -e não apenas a ele, como bem sabemos- como metáfora conveniente dos mistérios da natureza e das forças que estão além da linguagem. Este é, sem dúvida, um tópico para discussão futura. Seja como for, é pouco provável que este filme, não obstante seu título, seja a última palavra do cineasta.

A. O. SCOTT, 49, jornalista e crítico de cinema do "New York Times", jornal no qual foi publicada sua resenha aqui traduzida, foi finalista do Pulitzer em 2010.

CLARA ALLAIN é tradutora.


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