Folha de S. Paulo


Leia trecho inédito de "Guerra do Velho", de John Scalzi

SOBRE O TEXTO O trecho acima faz parte de "Old Man's War" (guerra do homem velho), livro de 2005 que inaugura a série homônima, cujos direitos para TV foram adquiridos pelo canal Syfy, e que a editora Aleph lança em novembro com o título, ainda provisório, de "Guerra do Velho". Este primeiro volume é narrado por John Perry, um viúvo de 75 anos que se alista nas Forças Coloniais de Defesa e embarca para uma colônia espacial.

*

Meu tablet me acordou com um alarme às 5h45, o que era notável, pois havia configurado para me acordar às 6h. A tela estava piscando. Havia uma mensagem com o título URGENTE nela. Toquei na mensagem.

AVISO:

Das 6h às 12h, estaremos conduzindo o regime de aperfeiçoamento físico para todos os recrutas. Para garantir o processamento imediato, todos os recrutas devem permanecer em suas cabines durante esse horário para que os oficiais coloniais cheguem e os escoltem às sessões de aperfeiçoamento físico. Para auxiliar no decorrer tranquilo desse processo, as portas das cabines serão trancadas às 6h. Por favor, use esse tempo para cuidar de atividades pessoais que exijam uso do banheiro e de outras áreas fora de sua cabine. Se após as 6h você precisar usar as instalações sanitárias, entre em contato com um funcionário colonial em seu convés de cabines através do tablet.

Você será notificado quinze minutos antes de sua consulta. Por favor, esteja com roupas adequadas e preparado quando os oficiais coloniais chegarem à sua porta. O café da manhã não será servido; almoço e jantar serão servidos nos horários habituais.

Na minha idade, você não precisa me dizer duas vezes para ir mijar. Saí cambaleando até o banheiro para cuidar disso e esperei que minha consulta fosse mais cedo que mais tarde, pois não queria ter de pedir permissão para me aliviar.

Minha consulta não foi nem mais cedo, tampouco mais tarde. Às 9h, meu tablet deu o alerta, e às 9h15 ouvi uma batida seca na minha porta e a voz de um homem chamando meu nome. Abri a porta e vi dois coloniais à minha frente. Recebi permissão para fazer uma rápida parada no banheiro e depois os segui do meu convés até a sala de espera do dr. Russell. Esperei por um tempo antes de receber permissão para entrar em sua sala de exames.

William Mur

– Sr. Perry, que bom ver o senhor de novo –ele falou, estendendo a mão. Os coloniais que o acompanhavam saíram pela porta dos fundos. – Por favor, entre no receptáculo.

– Da última vez que fiz isso o senhor enfiou milhares de pedacinhos de metal na minha cabeça –eu falei. – Desculpe se não pareço muito entusiasmado em entrar nisso aí de novo.

– Entendo –dr. Russell admitiu. – No entanto, hoje não vai haver dor. E estamos com pouco tempo, então, se o senhor não se importar. –Ele apontou para o receptáculo.

Relutante, entrei na máquina.

– Se eu sentir uma picadinha sequer, vou bater no senhor –alertei.

– Muito justo –dr. Russell disse quando fechou a porta do receptáculo. Observei que, diferente da última vez, dr. Russell trancou a porta do receptáculo com parafusos. Talvez ele tivesse levado a ameaça a sério. Não me importei. – Diga, sr. Perry –ele falou enquanto aparafusava a porta–, o que achou dos últimos dois dias?

– Foram confusos e irritantes –respondi. – Se eu soubesse que seria tratado como uma criança em idade pré-escolar, provavelmente não teria me alistado.

– É o que todo mundo diz –dr. Russel comentou. – Então, deixe-me explicar um pouco do que estávamos tentando fazer. Instalamos aquela série de sensores por dois motivos. Primeiro, como o senhor talvez tenha imaginado, estávamos monitorando suas atividades cerebrais enquanto o senhor realizava várias funções básicas e vivenciava certas emoções primitivas. O cérebro de todo ser humano processa informações e experiências mais ou menos da mesma forma, mas ao mesmo tempo cada pessoa usa determinados caminhos e processos únicos. É como todo ser humano, que tem cinco dedos, mas cada um tem impressões digitais únicas. O que estamos tentando fazer é isolar suas "impressões digitais" mentais. Faz sentido?

Eu assenti.

– Ótimo. Então agora o senhor sabe por que teve de fazer aquelas coisas ridículas e estúpidas por dois dias.

– Como falar com uma mulher nua sobre meu aniversário de sete anos –eu concordei.

– Conseguimos várias informações úteis desse teste –dr. Russell comentou.

– Não sei como –disse eu.

– É a parte técnica –dr. Russell me garantiu. – De qualquer forma, os últimos dias nos deram uma boa ideia de como seu cérebro usa as vias neurais e processa todos os tipos de estímulos, e essas são as informações que podemos usar como modelo.

Antes que eu pudesse perguntar modelo para quê, dr. Russell continuou:

– Em segundo lugar, a série de sensores faz mais do que um registro do que seu cérebro está fazendo. Também pode transmitir, em tempo real, as atividades de seu cérebro. Isso é importante, pois, diferente de processos mentais específicos, a consciência não pode ser registrada. Precisa ser transmitida ao vivo se tiver que fazer a transferência.

– A transferência.

– Isso mesmo –dr. Russell confirmou.

– O senhor se importa se eu perguntar de que diabos está falando? –perguntei.

Dr. Russell sorriu.

– Sr. Perry, quando o senhor se alistou no exército, achou que deixaríamos o senhor jovem de novo, certo?

– Achei –respondi. – Todo mundo acha. Vocês não podem fazer guerra com velhos, mesmo recrutando velhos. Devem ter algum jeito de nos rejuvenescer.

– Como o senhor acha que fazemos isso? –dr. Russell questionou.

– Sei lá. Geneterapia. Partes de substituição clonadas. Troca dos nossos órgãos velhos por novos.

– O senhor está meio certo –dr. Russel disse. – Usamos geneterapia e substituição clonada. Mas não "trocamos" nada, exceto o senhor.

– Não entendo –eu disse. Senti muito frio, como se a realidade estivesse sendo puxada debaixo dos meus pés.

– Seu corpo é velho, sr. Perry. É velho e não vai funcionar por muito mais tempo. Não há por que tentar salvá-lo ou atualizá-lo. Não é uma coisa que se valoriza quando envelhece ou tem partes substituíveis que o mantém rodando como novo. Tudo que o corpo humano faz quando fica mais velho é envelhecer. Então, vamos nos livrar dele. Vamos nos livrar dele inteiro. A única parte que vamos salvar é a única parte sua que não se degenerou"¦ sua mente, sua consciência, sua noção de "eu".

Dr. Russell caminhou até a porta ao fundo, por onde os coloniais haviam saído, e bateu nela. Em seguida, voltou até mim.

– Dê uma boa olhada em seu corpo, sr. Perry –ele disse. – Pois está prestes a dizer adeus para ele. O senhor vai para outro lugar.

– Para onde estou indo, dr. Russell? –perguntei. Eu mal conseguia salivar o bastante para falar.

– O senhor vem para cá –ele falou e abriu a porta.

Do outro lado, os coloniais entraram de novo. Um deles estava empurrando uma cadeira de rodas com alguém nela. Estiquei o pescoço para olhar. E comecei a tremer.

Era eu.

De cinquenta anos antes.

JOHN SCALZI, 46, escritor americano de ficção científica, autor de, entre outros, "Redshirts" (St. Martin's Press), vencedor do Prêmio Hugo de melhor romance.

PETÊ RISSATTI, 35, é tradutor e escritor, autor de "réquiem: sonhos proibidos" (terracota).

WILLIAM MUR, 30, infografista da Folha, escreve e dirige filmes de ficção científica, como "Bong" (2015).


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