Folha de S. Paulo


Ilha das verdades excessivas

SOBRE O TEXTO Este trecho abre o epílogo do livro "Claro-Escuro", romance de formação do escritor cearense radicado em Pernambuco Sidney Rocha, que a Iluminuras lança em agosto.

*

O céu dentro de um inferno. Inverossímil. Ali nasceu Jeroni Fernanflor. No dia de São Narciso de Jerusalém. Mundo onde as mentiras se soldavam às verdades. Ali cresceu Jeroni Fernanflor, na ilha das verdades excessivas.

Ele é o menino no alto da escadaria, invadido por silêncios e agarrado ao corrimão, olhando para Cristina de Fernanflor. Dali vê também o relógio de coluna alta bem à entrada do salão, trambolho das mansões endinheiradas no mundo todo, pronto a humilhar o visitante com seu pêndulo de marfim, os tique-taques em gotas rouquejando naquele poço, mesmo quando em algumas horas do dia o silêncio fosse a lei mais severa.

Cristina está indo se sentar junto à janela, "poseur" no teatro das tardes suarentas, senhora e refém da plateia de escravos. No caminho, deixa o frasco gotejar essência de lilases brancas sobre os móveis, até alcançar o grande tapete de peles ao canto da sala. Ela está eternamente vestida para grandes ocasiões nenhumas. A plateia vê Cristina pelas brechas das venezianas da sala, e ela enxerga as sombras das cabeçorras espichadas no chão. Eles a contemplam pelas portas entreabertas, no reflexo das vidraças, ou em olhares dissimulados enquanto enceram o chão e, para eles, tanto como para menino no corrimão da escada, ela se faz acreditar invisível, e se desnuda com delicadeza de sua outra pele de cetim, agora o outro braço, até a manobra queimar todo o ar dos pulmões e ela seguir o dia carregada por frissons.

Valentina Fraiz

Todos estavam encantados com ela a maioria do tempo, mas não significa que Cristina fosse mulher solar. Era o oposto. Uma mulher cinza, de olhar insondável, e o menino não se aproximava dela sem os pensamentos o levarem à figura de uma santa tuberculosa.

A mãe não tossia, não gemia, seus olhos não lacrimejavam, um ai sequer libertava. Às vezes parecia desmaiar o rosto no livro, e voltava minutos depois, sem ajuda dos sais. A sensação de observar Cristina de Fernanflor desvanecendo em perfume, sem demonstrar nenhum sinal de derrota, fazia o menino, quando rezava, pedir a Deus para se vingar dele com a morte, nunca com as doenças sutis da alma.

Preferia os lugares onde pairasse o hálito da saúde e promovia distância segura dos doentes. Nada de visitar os enfermos, que isto é obrigação de padres. Era capaz de entender os mistérios das turbulências do ar e saber das chuvas muitos dias antes e quem, delas, fatalmente, adoeceria.

Afora a sanha dos hormônios, era um menino como os outros: sonhava com sóis e gatos, sonhos esquecidos quando os ossos crescem. Sóis rabiscados no teto de madeira do casarão, sóis mordendo as nuvens, nuvens barbas brancas de luar, também, gatos que nada eram senão círculos se equilibrando um sobre o outro e o rabicho se espichando interrogação sem ponto. Sorria deles. Alguma criança os guardou lá nos seus sonhos. Ou sonhava gatos de outros meninos sem aptidão para o desenho.

Os garotos de verdade. Quer dizer: não eram crianças metidas em corpos adulterados por gigantes, ou em caixões onde a morte, ofensiva a todas as idades, não permitiu crescerem.

Paravam para beber água, rezar, pensar na vida, descansar à sombra das acácias vermelhas, enquanto o caixãozinho quarava, zebrado pela luz do dia, reclinado na parede em frente ao casarão da rua do Florim, de onde o menino Jeroni podia sentir o ar estagnado pelas constelações, e podia ver o disco do sol girar, apontando raios muito severos nos costados da ilha. Ouvia as crianças resistirem, minguadas, enquanto a centopeia as carregava, e passavam em frente ao casarão do avô.

Outras vezes, o pai vagava desnorteado com o caixão do filho debaixo do braço, azul, rosa, anjo ou anja, o pacote ao deus dos cemitérios. Há tantos deuses ali, escondidos, à espreita, decididos pela piada terminal, a risada de orelha à orelha. Traições contra a ordem natural da vida, onde há pouca filosofia e muitas despesas a honrar.

Os olhos dos anjinhos viram pepitas subterrâneas. Há o caso do senhor Uchoa, paupérrimo lavrador: numa década, enterrou os doze filhos e, passados cinco anos do último, foi lá e desencavou as vinte e quatro pepitas de ouro. Então era comum ver os pais nos cemitérios buscando os olhos dos filhinhos no oco dos crânios. Nem todos conseguem. É como diziam os avaliadores da ilha: "Uns dão ouro melhor que outros", "as botijas são como as pessoas", por isso o preço às vezes frustra os caçadores.

Cristina de Fernanflor fecha as janelas até tudo se consumar, e se desfazerem a paisagem, os ruídos, o cheiro, a compaixão, o hálito da peste. Depois a paisagem raiada de sol entrava pelas folhas abertas do janelão.

Quando ia a Piños, acompanhando o avô, Jeroni protegia o nariz com os paninhos bordados, guardando-se do ar pestilento da costa e nunca se aproximava dos leprosários ou dos lazaretos. Nem a ferros conseguiriam colocá-lo, vivo, num velório, nem se fosse de Sua Majestade, pois as doenças transbordavam muito tempo ainda nos recipientes sem vida, não tentassem dizer o contrário.

O avô era uma pera inchada. Os ombros estreitos, a feição amarela e os braços fracassavam se tentassem abarcar a circunferência. Os seus adeuses pareciam sempre engraçados. Vivia os dias ensacado no terbrim, sob halos difusos. A pera se destacava no mundo crepuscular e violeta da varanda, contemplando, se não a natureza, outro dia morto.

Jeroni gostava dos olhos em chama dos empregados, da sagacidade, da mentira atrás da outra mentira, novas e seculares, a linguagem chula dos sapateiros, de flagrar as camponesas transando nos matagais, os saiotes levantados cobrindo o rosto, os rapazes em grupo apeando jumentas e cobrando duas moedas dos novatos para se meterem nelas, o suor e a risadagem das ruas.

Nesses jogos de amor e morbidez, invejava de Cristina de Fernanflor a capacidade de não se perturbar. A mãe gozava a paz majestosa de seu reino particular, estagnado, na sua ilha personalíssima. Era um universo assustador, e de grande fascínio, a quimera, convertida num grande enigma que ele carregaria por onde fosse.

Cristina de Fernanflor pode vê-lo dali, também. Para ela, era filho do sonho de uma nuvem.

SIDNEY ROCHA, 49, romancista, contista e editor, ganhou o Prêmio Jabuti de Contos e Crônicas em 2012 com "O Destino das Metáforas" (Iluminuras).

VALENTINA FRAIZ, 38, é artista plástica.


Endereço da página: