Folha de S. Paulo


Como o primeiro presidente eleito do Egito terminou condenado à morte

Cercado por cornijas douradas, cortinas com franjas e um círculo de assessores, Mohamed Mursi não parecia um homem a ponto de ser derrubado da presidência. E não media palavras, além disso. Era 29 de junho de 2013, o dia anterior às manifestações, muito alardeadas, que supostamente deveriam dar aos militares egípcios a cobertura de que necessitavam para tirar Mursi do poder. Mas perguntado se confiava no exército, ele respondeu com uma só palavra: "Gedan" - "absolutamente". Mais tarde, Mursi acrescentaria que "eles estão ocupados com os assuntos internos do exército, agora".

Mas evidentemente não estavam suficientemente ocupados - a entrevista foi a última que Mursi concedeu como presidente. Passados dois dias, Abdel Fatah el-Sisi, o comandante do exército, lhe apresentou um ultimato para que deixasse o cargo. E dois dias depois disso, em 3 de julho, Sisi ordenou sua detenção. Mursi passou os últimos 23 meses na cadeia, em julgamento por número cada vez maior de acusações, de espionagem a incitação à violência, como parte dos esforços de seus sucessores para garantir que ele jamais venha a ser libertado. Sisi, em contraste, se tornou presidente no lugar de Mursi, comandando uma repressão à maioria das formas de oposição que resultou na detenção de dezenas de milhares de dissidentes, e na morte de milhares de pessoas. A maior proporção deles é de partidários da Irmandade Muçulmana de Mursi - uma provocação que levou o grupo na semana passada a fazer o que na prática representa um apelo por insurgência armada.

O processo pode chegar ao seu apogeu na terça-feira. Depois de receber uma sentença preliminar de morte no segundo de seus quatro julgamentos, no mês passado, Mursi descobrirá se ela será ou não sustentada. O resultado deve gerar recursos, em um processo que demorará anos. Determinar se o governo egípcio levará mesmo a cabo um ato tão provocativo é algo que só o tempo permitirá.

Ueslei Marcelino - 8.mai.2013/Reuters
Mursi em foto de maio de 2013
Mursi em foto de maio de 2013

Mas caso a condenação seja confirmada, Mursi seria o primeiro ex-presidente do planeta a ser executado desde Saddam Hussein, em 2006. É um destino chocante para um homem que, menos de três anos atrás, se tornou o primeiro presidente a chegar ao posto no Egito por meio de eleições livres.

Como ele chegou ao fundo do poço é algo que depende de a quem você faça a pergunta. Os partidários de Mursi dizem que ele estava condenado desde o começo. Argumentam que quando Hosni Mubarak foi derrubado, em 2011, o regime se manteve em geral intacto e foi capaz de solapar o sucessor eleito desde o momento da eleição.

"A luta era inevitável", me disse Ahmed el-Khoufi, um dirigente da Irmandade Muçulmana, na semana passada. Khoufi é um dos mais de 100 homens que receberam sentenças provisórias de morte em companhia de Mursi, acusado de colaborar com o Hamas a fim de escapar da cadeia durante o levante de 2011. Ele está foragido, e diz que "era inevitável que houvesse um confronto entre os partidários de uma revolução que pedia liberdade, justiça social e dignidade humana e o regime que dominou o Egito por décadas".

Mas os companheiros de jornada iniciais de Mursi durante a revolução, os esquerdistas, progressistas e moderados que mais tarde adeririam aos aliados de Mubarak no esforço por derrubar o presidente, oferecem narrativa diferente. Argumentam que em lugar de manter um relacionamento funcional com as demais facções revolucionárias, Mursi as alienou rapidamente, e agia apenas no interesse da Irmandade Muçulmana. "A Irmandade sofria de certo grau de estupidez política", disse Abdel Moneim Aboul Fotouh, ex-líder da Irmandade Muçulmana que enfrentou Mursi na eleição de 2011 e chegou a ser visto como o favorito naquele pleito. "Eles achavam que podiam se proteger contra uma conspiração do regime de Mubarak por meio de sua organização, e só ela. Foram arrogantes. Mas é impossível, depois de uma revolução, ser protegido por qualquer grupo que não os donos da revolução: o povo".

Em junho de 2012, o dia de sua eleição, Mursi parecia ciente da necessidade de manter as aparências. Em um gesto simbólico, se bem que um tanto desajeitado, ele se apresentou à multidão na praça Tahrir, o epicentro do levante de 2011, e desabotoou o paletó. O ponto era mostrar que ele não estava usando um colete à prova de balas - e que, como representante do povo, ele não o temia.

Mas seria necessário mais que um simples gesto para manter a unidade. Mursi venceu a eleição, mas por pouco. E muitos dos que o impulsionaram à vitória no segundo turno não votaram por convicção mas por o verem como marginalmente mais aceitável do que seu oponente: o antigo primeiro-ministro do regime de Mubarak. Mas em lugar de tentar manter a todos dentro do bloco, Mursi era visto como cada vez mais divisivo, aberto apenas a ideias islâmicas e leal apenas à Irmandade Muçulmana. Em outubro, na celebração de uma das mais míticas vitórias do exército egípcio, ele convidou um dos homens condenados por assassinar Anwar Sadat, um de seus predecessores na presidência, para a cerimônia. Foi um gesto altamente provocativo que nada fez para atenuar os temores de que a eleição de Mursi era a porta de entrada para um Egito cada vez mais extremista.

Mas o evento que bem pode ter selado seu destino aconteceu um mês mais tarde, em novembro de 2012. Buscando aprovar em regime de urgência uma constituição controversa, com muito de islâmico, Mursi se arrogou poderes executivos completos, e se autorizou a desconsiderar o procedimento legislativo e garantir que o texto fosse colocado em votação pública sem mais debate. A decisão resultou em mortíferos combates de rua entre partidários da Irmandade Muçulmana e esquerdistas e progressistas, diante do palácio presidencial. Passados 10 dias, ele revogou a medida. Mas para os indecisos, o momento marcou um ponto sem retorno. Mesmo Mursi, em sua entrevista final, admitiu ter cometido um erro. "Não deveria ter sido assim, mas contribuiu para alguma forma de percepção errônea na sociedade".

Mohamed Aboul Ghar, o líder do partido social-democrata egípcio e uma das principais vozes progressistas a emergir da revolução de 2011, diz que foi naquele momento que ele percebeu que Mursi não duraria. No dia anterior à decisão de Mursi de governar por decreto, Aboul Ghar passou cinco horas em conversação com o presidente e outros líderes políticos. O objetivo era decidir o que fazer sobre a constituição, cuja redação havia chegado a um impasse.

As conversas pareciam promissoras. Os dois lados aceitaram compromissos, e Mursi parecia muito feliz, recorda Aboul Ghar. "Ele disse que achava que havíamos dado um passo muito importante, e que conseguiríamos salvar a constituição, encontraríamos um compromisso e resolveríamos esse grande problema do Egito".

Pelo relato de Aboul Ghar, Mursi prometeu que voltaria a se reunir com os opositores no dia seguinte, para finalizar o acordo. Mas isso jamais aconteceu. Em lugar disso, diz Aboul Ghar, "no dia seguinte veio o decreto de emergência. Isso me mostrou claramente que não era ele que decidia coisa alguma. Ele apresentou as sugestões [aos seus superiores na Irmandade Muçulmana], mas recebeu a ordem de calar a boca e lançar um decreto. Depois disso, fomos convidados a conversar com Mursi muitas vezes, mas não aceitamos mais".

A Irmandade Muçulmana retrata a situação de maneira diferente. Dizem que a decisão de forçar a aprovação da constituição era a única opção, e uma resposta razoável aos meses de intransigência tanto do aparelho de Estado quanto de políticos de inclinações laicas como Aboul Ghar. A cada tentativa de acelerar a transição democrática do Egito e estabelecer consenso, afirmam, eles encontravam obstáculos impostos por instituições hostis e políticos progressistas imaturos que se recusavam a trabalhar com Mursi em seu gabinete. "Essa é a situação", Mursi me disse, quando perguntado por que não havia indicado mais ministros de origens políticas diferentes. "Oferecemos cargos a eles, e eles recusam". Em uma decisão que contribuiu para o espírito de sítio da Irmandade Muçulmana, a Corte Suprema dissolveu a câmara baixa do Legislativo, dominada pelo partido, nos dias anteriores à eleição de Mursi.

Foi uma decisão que forçou Mursi a governar sem sua base de apoio legislativo - situação ele que sentia havia sido criada pelo aparelho de Estado a fim de solapar sua capacidade de realizar o que quer que fosse. Em seguida, nos dias anteriores ao fiasco constitucional, ele começou a temer que coisa parecida acontecesse: mais uma intervenção da Corte Suprema para dissolver o comitê encarregado de redigir um anteprojeto de constituição, conduzindo o processo de transição de volta à estaca zero. Sem constituição, raciocinava a Irmandade Muçulmana, não poderia haver um novo Legislativo, e sem Legislativo o Egito ficaria aprisionado no limbo da transição.

Mas qualquer que tenha sido a intenção, a decisão tinha jeito de ditadura, e significou um aprofundamento ainda maior das divisões do Egito ao longo do mandato de Mursi. Seus oponentes sentiam que não fazia sentido dialogar com ele. E Mursi via pouco sentido em tentar - o fato de que a Irmandade Muçulmana tivesse saído vencedora de todas as eleições pós-revolucionárias lhe conferia um senso equivocado de invencibilidade. Mas pelo final de maio, o partido deveria estar preocupado. A essa altura, uma parcela significativa da população já havia começado a se mobilizar contra ele.

Crucialmente, essas pessoas não incluíam apenas os suspeitos habituais - como Aboul Ghar. Um novo grupo ativista, o Tamarod, conquistou o público e encorajou milhões de egípcios, muitos dos quais eleitores de Mursi, a assinar uma petição solicitando eleições antecipadas. Sentindo que o momento era propício, a elite empresarial, que controlava a mídia, lançou uma campanha aberta de decapitação. À medida que junho ia se desenrolando, os jornais e a TV começaram a retratar Mursi e a Irmandade Muçulmana como terroristas e como únicos responsáveis pelos velhos e profundos problemas econômicos do país e pela escassez de combustível. Aboul Fotouh, antigo adversário de Mursi, apoiou os apelos por uma eleição presidencial antecipada e por protestos contra o presidente. Mas argumenta que esses protestos também foram estimulados por uma campanha para "difamar o presidente, difamar a revolução, e fazer com que as pessoas sentissem que a revolução não havia trazido qualquer estabilidade ou segurança".

O que veio primeiro talvez jamais possa ser estabelecido, mas em meio a um diálogo nacional cada vez mais histérico, as forças armadas também começaram a se mexer, nos bastidores. Conversas gravadas entre importantes generais que vazaram para a imprensa sugeriam que o exército, com apoio das monarquias do Golfo Pérsico, pode ter ajudado a bancar o Tamarod, o movimento de base que promovia a campanha anti-Mursi. E em 23 de junho a liderança do exército convocou diversos embaixadores ocidentais e deu a entender que estava considerando uma intervenção.

Mas a detenção de Mursi, quanto menos sua execução, de modo algum eram certeza. Em 29 de junho, nossa entrevista sofreu atraso enquanto Mursi negociava com Sisi no aposento ao lado. O processo talvez já tivesse sido deflagrado, mas não estava decidido. Mesmo depois de 30 de junho, quando milhões de pessoas saíram às ruas em oposição a ele, as negociações continuavam. Por trás das cenas, alguns dos oponentes de Mursi afirmam que, embora insistissem em sua renúncia, estavam ainda abertos à participação política continuada da Irmandade Muçulmana, em alguma forma. Mesmo em 3 de julho, uma fonte disse que Saad el-Katatny, o líder da Irmandade Muçulmana no Legislativo, recebeu uma proposta de participar de uma reunião televisada sobre a decisão de realizar novas eleições, um gesto simbólico para demonstrar que a Irmandade não seria completamente descartada.

Em 2 de julho, os aliados de Mursi disseram que ele cedeu quanto a alguns pontos - mas àquela altura era tarde demais. Em 3 de julho ele foi preso e a campanha de repressão, ainda em curso contra a Irmandade Muçulmana, começou.

A Irmandade Muçulmana, no entanto, como sempre recusou compromissos. Ao longo de sua quinzena final na presidência, pessoas como Aboul Ghar temiam que Mursi fizesse algum gesto de reconciliação e assim evitasse a ira popular, em alguma medida. "Pensei que Mursi poderia ter sido um pouco mais sábio, que ele poderia fazer algo de positivo", disse Aboul Ghar. "Mas ficou claro para mim que Mursi não tinha poder. Absolutamente nenhum. Era o Maktab Irshad [o conselho de administração da Irmandade Muçulmana] que detinha todo o poder. Eles não perceberam que seus partidários já os haviam abandonado. Não viram nada disso".

A Irmandade alega que o que aconteceu em seguida - massacres, prisões em massa, a sentença de morte contra Mursi - era parte do roteiro desde o começo, e que eles não receberam oportunidade de se retirar de maneira digna. Apontam que depois de alguns dias, em 8 de julho, a polícia e o exército já haviam abatido a tiros mais de 50 manifestantes pró-Mursi em um massacre diante do Clube da Guarda Republicana, no Cairo. Ahmed el-Khoufi, o dirigente da Irmandade Muçulmana que também está aguardando a confirmação da sentença de morte contra ele, na terça, diz que "desde o começo do primeiro massacre, diante do clube, ficou claro que o caminho que estavam seguindo era um espetáculo de teatro, que ainda não estava perto de acabar".

Mas como sempre, no Egito, não existe verdade simples e linear. Foi o exército que derrubou Mursi, e seus líderes desde então vêm tentando reprimir toda dissensão - islâmica ou não. Mas nas semanas que se seguiram à derrubada de Mursi, os moderados que forneceram a cortina de fumaça para o retorno do exército à cena política ainda tinham alguma influência. O presidente da Corte Suprema foi apontado como presidente interino. O mais conhecido liberal egípcio, Mohamed ElBaradei, foi indicado para a vice-presidência e autorizado a selecionar o primeiro-ministro, Hazem el-Beblawi, professor de Economia e membro do partido social-democrata de Aboul Ghar. Por boa parte de julho, Baradei e uma equipe da União Europeia conduziram negociações com a Irmandade Muçulmana, tentando convencê-la a desmontar seu imenso acampamento de protesto em Rabaa al-Adawiya, no leste do Cairo, antes que a linha dura o demolisse à força.

O massacre de agosto em Rabaa, que viu a morte de mais de 800 manifestantes pró-Mursi atacados por soldados, não era uma conclusão inevitável, a princípio. E o encarceramento prolongado de Mursi tampouco. Na metade de julho, um general me disse que o destino do ex-presidente ainda não estava decidido, e que ele poderia até ser libertado, quando o país se acalmasse. Mas quanto mais tempo a Irmandade Muçulmana ficasse na rua, e quanto mais radical sua retórica se mostrasse, mais provável se tornava uma repressão vigorosa. A intransigência dos oposicionistas causava embaraços ao novo governo. O primeiro-ministro daquele momento, Beblawi, me disse no ano passado que "havia crescente raiva da parte do povo; como é que eles querem que acreditemos que desejam paz e segurança se existe um insulto direto a isso nas ruas, um desafio às autoridades, e nada é feito?"

Àquela altura, Sisi ainda não era o líder oficial do país - mas Beblawi sugeriu que ele já tinha grande influência sobre o modo como as coisas aconteciam. "O general Sisi e o exército desempenharam papel importante no 30 de junho", disse Beblawi. "Não há dúvida quanto a isso. E sua popularidade na época era alta. Continua a ser. E ele também era o comandante do exército, a mais organizada e sólida organização do país. Os fatos da vida são esses. Se vou a um jogo de futebol acompanhado por um grande futebolista, ele decerto terá mais fãs do que eu. Se eu for com um cantor, a mesma coisa. Os fatos são esses". Talvez o momento que defina o período pós-Mursi, e o que definirá o destino de Mursi, tenha sido o 24 de junho. Naquele dia, Sisi fez um discurso que mudou o balanço do poder em favor da linha dura. Porque a Irmandade Muçulmana desprezou os apelos de Baradei por um acordo e se recusou a deixar a as ruas, Sisi por sua vez apelou aos inimigos da Irmandade que voltassem à praça Tahrir, aos milhões, para lhe dar o mandato de que necessitava para combater o terrorismo. Era uma tentativa muito mal disfarçada de ignorar os esforços dos defensores da paz como Baradei e conquistar apoio à erradicação da Irmandade Muçulmana, e às ambições políticas pessoais do general.

"Fiquei chocado", recorda Khaled Dawoud, então porta-voz da coalizão política de Baradei. "Lembro-me muito bem de acordar tarde, porque era ramadã, e de ver Sisi na TV em uniforme militar e com aqueles óculos de lentes muito escuras, e de ouvir um discurso muito linha dura e pensar 'o que é isso? Você está pedindo um mandato ao povo? Você é só o ministro da Defesa'".

Mas dois dias depois, muitos egípcios mostraram que aparentemente não compartilhavam dessa preocupação: milhões deles foram às ruas para dar a Sisi o mandato solicitado. No mesmo dia, promotores apresentaram acusações formais contra Mursi, acusando-o de escapar da prisão em 2011 - uma acusação que os promotores pareciam felizes por desconsiderar quando da eleição presidencial, mas que agora pode valer sua execução. E pouco menos de três semanas mais tarde, soldados atacaram o acampamento em Raaba, matando 800 pessoas, no pior massacre promovido por um Estado pelo menos desde a praça Tiananmen.

Quaisquer esperanças de que Mursi pudesse sair da prisão morreram ali, e a confiança que ele expressou no exército em 29 de junho parece ainda mais injustificada. Ainda assim, ele acertou uma coisa naquele sábado, ao falar comigo de uma cadeira de moldura dourada no palácio Qubba, no Cairo.

"Foi um ano muito difícil", ele disse. "E acredito que os próximos anos também serão muito difíceis".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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